LUCIANO ALVES PEREIRA

Tudo começou em 14 de junho do ano passado. Tal qual passageiro clandestino em cruzeiro de luxo, o Diário Oficial da União publicou a Lei 12.249, na qual um rabicho abrigava um ‘estranho no ninho’, complementando outra Lei, a 11.442. Esta, específica do TRC. Em seus parágrafos estabeleciam-se novas regras para o pagamento dos fretes de autônomos. De maneira açodada, proibiu-se o repasse em dinheiro ou cheque nominal. Um empenho jurídico-fiscal para erradicar a famigerada carta-frete, assim vista pelos estradeiros. Diz o artigo 5°. A, da 12.249, que a remuneração deverá ser feita por meio de crédito em conta de depósitos, mantida em instituição bancária ou por forma a ser regulamentada pela ANTT. No período, regras foram elaboradas por resolução da agência e a data de entrada em vigor falava em 17 de outubro passado.  Não deu. A fórmula se mostrou simples, só na aparência. Diferente do que pretendia José Araújo ‘China’ da Silva, presidente da União Nacional dos Caminhoneiros do Brasil (Unicam). Houve prorrogação de sua vigência para janeiro de 2012.

China se diz pai da anti-carta-frete em todas suas entrevistas. E considera como grande ponto, já conquistado para o TRC pátrio. Seus objetivos buscam o fim do ‘frete-cabresto’, como China chama carta-frete, forma cruel de submissão imposta ao estradeiro pelos postos de abastecimento, recebedores da dita cuja. Numa outra banda, formaliza-se um registro e consequente geração de comprovantes de renda do autônomo, visando o realismo de rendimentos ao cadastro bancário e obtenção de financiamento a juros subsidiados pelo BNDES. No centro, a aquisição de caminhões zero km. Mas a recente prorrogação deixou à vista que o veneno mata-carta-frete tem efeitos colaterais de monta sobre o organismo carguista.

Segundo circulou na esteira dos favoráveis às medidas extirpadoras do ‘papel qualquer’ com força de cambial, a indústria de transporte movimenta R$ 60 bilhões anuais em fretes rodoviários. É um número proveniente do IBGE, que vai além. Em tal universo de transações, 70% opera na informalidade. Dá pra acreditar? É muito dinheiro. A grandeza revela a dimensão de quantas empresas embarcadoras poupam o seu capital de giro em cima da triangulação com o posto de abastecimento e o caminhoneiro. Este arcando com todos os custos. Ou seja, há enormes interesses, ainda na surdina, em oposição à obra-prima do China.

Os sindicatos das empresas do TRC de Pernambuco e Bahia, por exemplo, têm suas discordâncias aos caprichos da Resolução 3.658 da ANTT. No Sul, afirma o advogado Fernando Zanella, ligado ao sindicato gaúcho (Setcergs), que emergem inconstitucionalidades do texto, como “obrigar o pagamento eletrônico, deixando de lado a moeda oficial brasileira”. E vai mais: há o Decreto-Lei 857, de 11 de setembro de 1969 (período de transição de Costa e Silva para Médici) que é curto e grosso: “São nulos os contratos que restringem o uso normal da moeda”.

Visão subsidiária tem Antônio Siqueira, presidente do Setceb (sindicato das transportadoras da Bahia). Ele revelou durante o XII Congresso da ABTC em Belo Horizonte (agosto), que “falta competência à ANTT para legislar sobre matéria financeira, especialmente se metendo na forma de contratações de serviços”.

Subentende-se que, a prevalecer a redação atual da 3.658, não faltarão interessados em levar a discussão para a Justiça. No seu modo de ver, o feito do China foi “uma grande pegadinha para o setor do transporte de cargas”. E protestou: “Algo mais absurdo que se possa imaginar, pois se criou o agente financeiro para intermediar o pagamento das empresas ao caminhoneiro”. Ele garante que, com isso, “a ANTT cria mais esse custo absurdo para as empresas”. Seu inconformismo prossegue: “Esta seria a única forma dos caminhoneiros comprovarem suas rendas e o único jeito de o governo controlar-lhes os ganhos?”

No mesmo evento, Flávio Benatti, presidente da NTC&Logística, entidade nacional dos transportadores de carga, de São Paulo, fez veemente  defesa dos dispositivos anti-carta-frete. Sua fala evoluiu para um ponto polêmico e encostou no conhecido viés da concorrência desleal. Traduzindo: as embarcadoras capitalizadas comprometem o seu giro enquanto outras se financiam em prazos de 15 e 30 dias, nos postos de abastecimento, às custas dos autônomos. De fato, os resultados do negócio resultam de operações desiguais. Como se vê, a encrenca é mais extensa e a batalha definitiva ocorrerá quando os caminhoneiros, que recebem em dinheiro ou em cheque, tiverem de se submeter ao burocrático crédito em conta ou o porte do cartão de crédito dedicado.

De certa forma, pode-se perceber que o alívio ao prejuízo do estradeiro não parece ser a preocupação central da classe patronal. Como arremata Siqueira, “o tema está pouco divulgado ou quase nada, porém, quando isto vier totalmente à tona, será o salve-se quem puder. Com certeza, por parte dos caminhoneiros poderemos até ter greve no setor”. Será um novo ENEM?