Luciano Alves Pereira
Revista Carga Pesada

Passados cerca de 60 anos da apoteótica criatividade hollywoodiana de Cecil B. De Mille – ele foi diretor do filme O Maior Espetáculo da Terra (entre outros) e virou celebridade do cinema, desde a década de 1950 –, a Freightliner americana reeditou o referido estilo espetaculoso em grandes espaços para a apresentação do seu caminhão Inspiration. Foi no princípio de maio do ano passado, em Las Vegas, EUA. O fabricante de cargueiros faz parte do conglomerado Daimler AG alemão e escolheu a represa de Hoover, que fica próxima à cidade, para promover o mega evento e marcar o nascimento do seu caminhão autônomo. A base é o modelo Freightliner Cascadia Evolution. Já a barragem tem o registro histórico de ter sido a maior obra do seu tempo, justamente no período da Grande Depressão (1929) e virou monumento de superação (clique aqui e veja o vídeo)

O protótipo de caminhão autônomo Freightliner Cascadia Evolution

No Brasil, os ecos de um veículo que dispensa o comando permanente do condutor, chegaram como coisa extravagante, própria da excentricidade de Hollywood. Compreende-se. Quem iria imaginar que as autoridades de trânsito sequer pensariam em admitir o ir e vir de um caminhão sem que seu chofer estivesse com as duas mãos agarradas ao volante?

Ocorre que neste janeiro, o governo Obama resolveu apoiar a coisa. E de forma oficial, na abertura do North American International Auto Show in Detroit, uma das cidades-berço da indústria automobilística mundial. Washington não só falou como apostou no futuro do caminhão, ônibus e carros autônomos. “Enfrentar o desafio de uma evolução do transporte mais limpo e moderno, requer infraestrutura que consiga reduzir os congestionamentos, sem ter de construir novas pistas indefinidamente”, disse Anthony Foxx, secretário (equivale a ministro) de Transportes de lá. E tocou logo no nervo exposto dos infernais nós de trânsito deste mundo de Deus. “É imperativo que façamos melhor uso das vias que dispomos e os veículos autônomos nos oferecem um jeito realístico de fazer isso”, afirmou Foxx.

O governo americano investirá US$ 10 bilhões em dez anos para “testar veículos automatizados e conectados”. No final da fala é que abordou o principal: “Nós sentimos que a tecnologia da automação será capaz de avançar em conveniência, mobilidade e segurança, uma vez que os acidentes decorrem de erro dos motoristas”. Foi a desistência confessada. O conforto e segurança das estradas empacaram e terão de procurar outras vias. Uma delas seria o veículo autônomo. Martin Zeilinger, engenheiraço da Daimler Trucks AG, explicou em Las Vegas que, aos poucos, vários dispositivos de segurança já estão incorporados aos caminhões que rodam por aí. Citou o ABS, o piloto automático e o ESC (controle eletrônico da estabilidade). Em nível acima (2), dois outros controles assistem ao condutor. Seria o cruzeiro adaptativo e o gerenciamento integrado do trem-de-força, “enquanto o volanteiro retém a direção sob seu comando. Mas não o pleno acelerador nem os freios”.

Como se vê, o poder decisório do motorista vai sendo cortado até que, no nível 4, o profissional tem o assento contemplativo de seguir o desfilar dos dados da navegação. Essa bandeja de dispositivos entupidos de chips “é intrusiva” e mesmo “despudoradamente invasiva e chega a assumir um caráter pedagógico”, diz o jornalista Eduardo Rocha, da Auto Press. E acrescenta: “Caso o motorista se coloque em risco de colisão, os sistemas entram em ação, sem se preocupar com possíveis melindres de quem está ao volante”. Como comentou, “o condutor passa a ter cuidado para que o carro não reprove o seu comportamento – com uma freada de advertência ou uma sutil mudança no esterçamento do volante”. Enfim, abre-se à realidade: “É o caso de se aceitar a condição de refém da tecnologia de segurança do fabricante…”

Barateada e ampliada em capabilidade, dita tecnologia assusta o mundo do transporte, o qual constata não haver mais futuro em insistir na Educação nem no Esforço Legal, dois dos três esteios na prevenção de acidentes de trânsito. Assim, o profissional terá de ser destituído do comando a bordo, mas presente como um copiloto.
Sobre cassar o direito de decidir como comandar o veículo, dois veteranos motoristas da Trans-Herculano (puxa produtos perigosos), de Juiz de Fora (MG), se encontravam (em meados de janeiro) assentados na privilegiada varanda do restaurante do Roberto Rezende (km 557, da Fernão Dias) e viam o jeito dos profissionais descerem a serra de Itaguara (sentido SP). Chovia muito e parte importante do fluxo deixava despencar acima de 80 km/h, naquele declive comprido, com curvas fechadas no final da embalada. O cálculo era no visual, enquanto a avaliação por dedução. Aos descentes não interessavam os riscos, por imposição de uma talvez ‘opacidade mental’, como foi o apelido que rolou. Tal quadro já virou consenso entre os macro-planejadores do transporte rodoviário e os está levando a agir pelo rebaixamento da capacidade de decisão da turma de raladores de boleia. A tecnologia da automação é a ferramenta. Coisa para o futuro, que já corre solta no fechadíssimo clube dos fabricantes de veículos.