Dia 30 de maio, a rodovia Rio-Bahia (BR-116) completou 55 anos de asfaltamento entre o Rio e Salvador. A data coincidiu com o paro dos caminhoneiros e constitui oportunidade primorosa para os de agora entenderem a supremacia do modal rodo sobre o ferroviário. Tudo contado por quem viu cada passo
Luciano Alves Pereira
A recente a paralisação dos caminhoneiros travou o país. Começou apoiada pelos anti-Temer. Quando faltou combustível pra moçada, o vento virou e a cachoeira de ataques anti-TRC surgiu ruidosa de todos os cantos. Gente supostamente entendida em transporte abriu o boqueirão pra alinhar o retrovisor e mirar os governos passados por “seu desleixo com o modal ferroviário, favorecendo a hipertrofia do rodoviário”. Este movimenta mais de 60% de tudo que tem forma, peso e nome no Brasil – estudo da Fundação Dom Cabral (FDC/BH) diz que são 54%. Já no segmento de passageiros, a porcentagem passa dos 90%, excluindo o aéreo. Os governos dos últimos 50 anos não consideraram o trem capaz de responder à pressa da nação no período. Urgência se impunha porque até mais da metade do século 20, o Brasil era considerado “um imenso arquipélago, dado o isolamento de suas regiões, embora de território contínuo”.
As críticas anti-rodo sempre existiram, principalmente no meio acadêmico. Ganhou status de trovão na paralisação das estradas. Até Miriam Leitão, comentarista de economia de TVs e jornais, escorregou no asfalto com óleo derramado. Natural de Caratinga (MG), tinha de se lembrar das mudanças do transporte ocorridas no seu quintal. Por exemplo, como a passante rodovia Rio-Bahia (ex-BR-4, hoje BR-116) abocanhou as cargas e passageiros da estação local da Estrada de Ferro Leopoldina, uma estatal da União. Tudo visto e conferido pelos conterrâneos de Miriam, na transição ferro-rodo.
‘PAU-DE-ARARA’ − Como seu vizinho, em Muriaé (MG), acompanhei os passos daquele ocaso ferroviário. A Rio-Bahia também passa lá. Tanto que me lembrei da caprichosa coincidência de datas. Seu asfaltamento completou 55 anos em 30 de maio, dia em que a paralisação estradista alcançava o seu pico. Dita pavimentação fez parte ainda dos planos do governo de JK (1955-1960) e contou com recursos do Fundo Rodoviário Nacional (FRN), criado em 1945. Foi inaugurada por João Goulart, em 1963, pouco menos de um ano antes de ser destituído pelo movimento militar de 1964.
Tida como maior obra de uma administração, envolveu cerca de 30 empreiteiras, mais o empenho de 11 mil homens, além de 3 mil máquinas, instalações e veículos. Os dados são do engenheiro Roberto Ferreira Lassance, então presidente do Conselho Rodoviário Nacional, órgão federal extinto. Para coordenar a pesada empreitada, formou-se a Ceorb (Comissão Especial das Obras da Rio-Bahia), sediada em Governador Valadares (MG), A comissão tinha como símbolo, a arara estilizada com a trouxinha de roupas na ponta da uma vara que lhe pendia sobre o ombro.
Representava o ‘pau-de-arara’, estigma pejorativo do sofrimento de brasileiros do Nordeste, que migraram aos milhões para as regiões Sudeste e Sul. Vinham como animais, sobre caminhões, assentados em tábuas fixadas nas laterais das tampas da carroceria.
HAVIA FERROVIA − Ao todo foram asfaltados 1.657 quilômetros entre o Rio e Salvador. Concluídos na data, os restantes 1.272 quilômetros entre Leopoldina (MG) e Feira de Santana (BA). Bem antes, em 1946, houve reorganização do DNER (hoje sucedido pelo DNIT) e o presidente Dutra deu continuidade à intenção (1937) de Getúlio Vargas em ligar pelo chão o Rio e São Paulo a Salvador. Não havia máquinas, somente trabalho braçal e carroças puxadas por burros.
Para os que falam em trem de ferro sem saber onde ele apita, no período pré-asfalto, Salvador já estava ligada por ferrovia a Belo Horizonte e, por extensão, ao Rio e São Paulo. A Central Bahia vinha até Monte Azul, no extremo norte de Minas. As cargas e passageiros faziam baldeação para os trens da Central do Brasil, ambas de bitola métrica. Em BH, novo transbordo para a bitola larga da mesma Central do Brasil.
Por que os governos de então não pensaram que as ferrovias fariam falta em 2018, devido à tal ‘opção equivocada pelas rodovias?’ Muita gente ataca JK, visto como “submisso aos lobbies das montadoras e transportadoras”, além de outras infâmias. No entanto, superficial mergulho na história mostra que várias administrações anteriores já haviam se convencido de que os estratosféricos custos de alguma modernização de nossa escassa malha ferroviária, herdada dos ingleses no bagaço, não estavam ao alcance de nenhum orçamento.
SÓ PREJUÍZO − Recuperando as dobras do tempo, as rodovias passaram a receber investimentos do FRN e foram mitigando o crônico isolacionismo da nação-continente. Prova dessa, digamos, convicção consta também da história. Pouco depois do asfaltamento da Rio-Bahia, o primeiro governo militar iniciou extenso programa de erradicação de ramais deficitários − e ponha déficit nisso −, substituindo-os por estradas asfaltadas, ainda que toscamente. Carga e passageiros haviam desaparecido. Um dos casos ocorreu na área da própria Rio-Bahia. A Estrada de Ferro Bahia-Minas passou por completa desativação, tendo os trilhos arrancados. Estes ligavam Araçuaí (MG) a Caravelas (BA), via Teófilo Otoni e foram projetados para chegar a Diamantina (MG). Ainda na mesma década (1960), vários outros ramais foram descontinuados. Mas os ferroviários seguiram como estáveis funcionários públicos.
Para os curiosos com relação àquele tempo, tal realidade funcional e sua operação mais frouxa concorreram para a perda da carga e passageiros, quando o caminhão e o ônibus começaram a concorrer com mais agilidade, nenhuma burocracia, sem falar nos valores dos fretes e tarifas.
D. Maria Auxiliadora Costa (D. Lia), viúva do saudoso Vicente Costa, fundador da Fetcemg (federação das transportadoras de Minas), contou como eram os procedimentos na antiga Rede Mineira de Viação (RMV), malha ferroviária operada pelo estado até início dos anos 1950. Quando um volume chegava avariado na estação de Araxá (MG), onde trabalhava, era aberto um processo cuja tramitação levava 30 dias, até que houvesse autorização para o ressarcimento ao cliente. Enquanto isso, os caminhões Chevrolet, Ford, Fargo, a gasolina, entregavam os volumes de um dia para outro. As eventuais avarias eram acertadas no ato.
OS GAÚCHOS − Retornando à emblemática Rio-Bahia, o que se viu foi a rodoviarização de todo o movimento com o Nordeste. Seja de mercadorias e principalmente passageiros. Os caminhões Mercedes logo ganharam
um truque (após 1966). Sua capacidade de carga dobrou e milhares deles caíram na BR-4. O frete era farto e o diesel barato. Menos da metade do preço da gasolina.
Ainda assim, ouvi de vários rio-baianos que no Nordeste ”tinha duas coisas boas: o côco e a hora de voltar”. O comentário expressa a precariedade daquelas estradas sem estrutura mínima ao estradeiro, já a partir do ‘paralelo de Teófilo Otoni’. As gritantes carências começavam bem abaixo da Divisa Alegre, limite de MG/BA.
Nisso vieram os gaúchos. Eles ocuparam a malha nordestina com o início da fabricação do Scania L-110 Turbo (4×2), com 275 cv e câmbio de dez marchas. Na rabeira, as carretas de três eixos, principalmente Randon. O asfalto até Salvador − depois até Recife e além − atraiu a rapaziada de São Marcos (RS), bucólica cidade vizinha a Caxias do Sul, a qual se tornou pólo nacional de carreteiros. Há vasta ‘literatura’ a explicar o ‘fenômeno sulista’. No entanto, a pavimentação da Rio-Bahia foi determinante nesse fluxo de longo curso.
Junto com a expedita galera, seguiram os apoiadores imprescindíveis: os churrasqueiros e seus restaurantes à beira-via. Principalmente do Rio Grande. Daí a Rio-Bahia virou passarela do Scania.
FERROVIA DE AÇO − Falar que houve escolha obcecada pelo rodo é desconhecer as esquinas da logística por que passaram as decisões de governos de outrora. Não é justo, porém, omitir o esforço ferroviário de grande monta do período, ocorrido e não concluído no governo Geisel (anos 1970). Era a Ferrovia do Aço. Seu ministro dos Transportes se empenhou para que o pólo produtor de aço na região central de Minas fosse contemplado com meio moderno de escoamento para o complexo consumidor de São Paulo. Como os entendidos no assunto sabem, trem de ferro é um brinquedinho muito caro. A ligação seria construída em mil dias. Acabou ficando menos da metade. Hoje, a linha singela pega minério em Congonhas do Campo (MG) e contribui para ganhos de produtividade da MRS na puxada do insumo para exportação. Bacanas que hoje condenam a escassez de trilhos úteis foram contra a construção da via, por cegueira ideológica.
Na atual rodo-operação Brasil, o professor Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Infraestrutura, Supply Chain e Logística, da Fundação Dom Cabral, confirma as virtudes do caminhão quando no processo Just-in-time. Ou seja, permite à indústria e ao comércio trabalharem com estoques mínimos. Assim é no mundo afora. A partir de 2018, diante da gritaria, haverá jeito de passar parte dessa carga de hora marcada para o trem? A Confederação Nacional do Transporte tem a resposta. O seu Plano de Transporte e Logística estima que o país precisaria de quase R$ 1 trilhão para desenvolver os 2.045 projetos existentes para o setor. Se todos forem executados, mesmo assim, a rodo-dependência ainda continuaria no horizonte de 2035.