Apesar da lei e da chuva de processos judiciais contra elas, gerenciadoras de risco continuam não recomendando caminhoneiros com o nome no SPC ou Serasa. Como fazem há muitos anos…
Nelson Bortolin
É assunto antigo – que, no entanto, se renova todo dia. Como no caso de Edson Roberto Veiga, 42 anos, autônomo de Curitiba, que tem uma dívida financeira e, por isso, está na lista de restrição de gerenciadoras de risco. “Se não deixam você trabalhar, como é que você vai pagar sua dívida?”, questiona. Edson já procurou uma das gerenciadoras e ela limpou o nome dele – mas só por um mês. “Só posso buscar serviço nas transportadoras que usam as gerenciadoras que me liberam, ou nas que nem fazem gerenciamento. Mas essas oferecem os piores fretes”, afirma.
Edson não está na lista de uma das gerenciadoras mais tradicionais, mas, para poder usufruir desse bom conceito, teve que adquirir o cartão dela. Com o cartão, cada vez que uma transportadora faz consulta sobre ele, desconta de R$ 5 a R$ 20 no valor do frete. E o cartão tem que ser “renovado” uma vez por ano. Mais R$ 100 de despesa para o Edson. Dinheiro que ele paga… para poder trabalhar!
E se o caminhoneiro for assaltado, então? Como é que ele passa a ser visto pelas gerenciadoras de risco? Há quatro anos, Jefferson Nogueira Wendhausen, o Montanha, de Itajaí (SC), foi surpreendido em Campina Grande do Sul (PR) por ladrões de cargas. Ficou uma noite refém, foi solto em Curitiba – e sua vida tornou-se um pesadelo.
Como acontece com muitos caminhoneiros que são assaltados no trabalho, Jefferson, de vítima, passou a suspeito. A gerenciadora de sua transportadora deixou de recomendá-lo. Depois de cinco anos no emprego, com a confiança do patrão, ele ficou “negativado”. Ainda permaneceu na empresa dois meses, sem trabalhar. “Mas fui mandado embora porque lá eu não podia mais dirigir.”
Hoje, Jefferson está numa empresa que transporta peças para a Petrobras e não precisa fazer seguro de suas cargas. Ficou seis meses sem ganhar. “As contas atrasaram. Sorte que a minha mulher trabalhava. Sobrevivemos com o pouco que ela ganhava: temos quatro filhos.” Ele processou a gerenciadora por danos morais e ganhou o processo em primeira e segunda instâncias. Está esperando a execução da sentença de indenização.
Por todo o País, pipocam ações desse tipo, a maioria com ganho de causa para os motoristas. Laurinho Poerner, advogado de Jefferson, ajuizou 30 processos e só se lembra de ter perdido um. “Essas consultas feitas pelas gerenciadoras são ilegais, violam princípios constitucionais do direito ao trabalho, da privacidade.” Segundo ele, além de indenizar os motoristas em valores que vão de R$ 10 mil a R$ 20 mil, os juízes determinam às empresas que parem de fazer as consultas.
Mas elas continuam. E vão muito além da Serasa e do SPC. Marcos Augusto Gonçalves, 35 anos, de Bauru (SP), já gastou bastante com advogados para tirar seu nome das listas das gerenciadoras de risco. Razão: em 2007, terminou de cumprir uma pena de dois anos e oito meses a que fora condenado pela Justiça.
Seu advogado lhe disse que, cumprida a pena, ele voltava a ter os direitos de qualquer cidadão. Não foi bem assim. No primeiro pedido de emprego, a gerenciadora de risco bloqueou seu nome. Marcos botou um advogado na parada, mas só foi liberado para transportar cargas de até R$ 140 mil. “Sorte que o encarregado da transportadora era meu amigo e não virou as costas para mim”, afirma.
Nessa mesma empresa, em 2010, Marcos foi carregar na JBS, em Lins (SP), e descobriu que estava bloqueado por outra gerenciadora. “Disseram na minha cara que não podiam me liberar por causa do meu passado. Quer dizer: me condenaram pela segunda vez.” Nova briga com advogado no meio, até que ele conseguiu ser liberado depois de ameaçar processar a JBS e a gerenciadora.
Consulta não é prevista na apólice
O presidente do Sindicato das Empresas de Transporte do Paraná (Setcepar), Gilberto Cantu, explica que as apólices de seguro determinam que seja verificada a capacitação profissional do motorista. “Não dizem que deve ser investigada a situação de crédito dele”, conta.
Essa informação é confirmada numa apólice de seguro de carga a que a Carga Pesada teve acesso. Está escrito lá que a transportadora tem que ter uma gerenciadora de risco para a viagem. Mas, quanto à situação do motorista, diz apenas que deve ter CPF válido, residência fixa, referências pessoais (de amigos, ex-patrões) e profissionais (de quem o contratou antes), carteira de habilitação compatível com a situação em que vai trabalhar e dentro do prazo de validade, baixa ou nenhuma pontuação de multas, registro na ANTT dentro do prazo de validade e certificação para veículo e/ou carga específica quando for o caso. Nenhuma referência a SPC ou Serasa.
É a gerenciadora de risco que dá o aval para o motorista levar a carga. Ou seja, a transportadora tem que verificar a situação do motorista junto à gerenciadora. Prossegue Cantu: “Quando o motorista é funcionário ou agregado, a consulta (da transportadora à gerenciadora) deve ser feita uma vez a cada seis meses. Se o motorista não tem vínculo com a transportadora, a consulta deve ser feita em cada embarque”. Segundo Cantu, se a transportadora não fizer a consulta ou se permitir que um motorista negativado leve a carga, fica sem a cobertura do seguro.
Mas, para ele, o gerenciamento de risco não deve ser injusto com o caminhoneiro. “Não acho correto o motorista não poder carregar só porque está com uma prestação atrasada numa loja. Isso não deveria acontecer.”
O presidente do sindicato das transportadoras de São Paulo (Setcesp), Tayguara Helou, também se diz “totalmente contrário” a restringir o trabalho do caminhoneiro que está com o nome no Serasa ou no SPC. “A consulta é para avaliar se aquele indivíduo é integrante de uma quadrilha, não para retirar o trabalho de ninguém. Se não puder trabalhar, o camarada não sairá nunca daquela situação de dívida”, ressalta.
Ele acredita que, com o tempo, foram sendo criadas “distorções” na atividade de gerenciamento de risco. “As seguradoras passaram a obrigar as empresas a terem um PGR (Plano de Gerenciamento de Risco) e dentro do PGR tem a questão da consulta de cadastro. Toda obrigação acaba gerando distorções”, afirma ele, alegando que não é preciso investigar a situação creditícia do motorista.
A reportagem tentou entrevistar algum representante da Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg), mas o pedido não foi atendido pela assessoria.
Juízes divergem sobre o tema
Para tentar fazer com que as gerenciadoras parem de restringir motoristas com problema de crédito, os sindicatos e o Ministério Público usam argumentos jurídicos previstos na Constituição, como o direito ao trabalho e à privacidade. Mas cada juiz dá sua própria interpretação a essa questão.
A desembargadora Cilene Ferreira Amaro Santos, do Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília, escreveu numa sentença que, em se tratando de motoristas profissionais, acha razoável a pesquisa de antecedentes criminais, porque “a existência de condenações por crimes de trânsito, por exemplo, pode indicar que o candidato não é apto a ocupar a vaga oferecida”. Mas ela não vê justificativa para a pesquisa em serviços de proteção ao crédito, como SPC e Serasa, “uma vez que a existência de débitos nada diz acerca da capacidade laborativa (de trabalho) do motorista”. Ela determinou que uma gerenciadora parasse de fazer essas pesquisas.
Interessante é que a Lei 13.103 (Lei do Caminhoneiro), aprovada no ano passado, é bem clara nesse aspecto. Está escrito lá: “É vedada a utilização de informações de bancos de dados de proteção ao crédito como mecanismo de vedação de contrato com o TAC (Transportador Autônomo de Carga) e a ETC (Empresa de Transporte de Carga) devidamente regulares para o exercício da atividade do Transporte Rodoviário de Cargas”. É um argumento a favor dos autônomos e, por extensão, também dos empregados, mas, por enquanto, não tem sido usado nos processos judiciais.
TST mantém liminar de sindicato
Em novembro do ano passado, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve uma liminar concedida por uma juíza de Uruguaiana (RS), proibindo 25 gerenciadoras de realizarem as consultas dos cadastros do SPC e Serasa de caminhoneiros da área do Sindicato dos Trabalhadores Rodoviários de Cargas de Linhas Internacionais do Rio Grande do Sul (Sindimercosul).
Mas, segundo o diretor do Sindimercosul, Plínio Carlos Ferreira Fontela, as gerenciadoras continuam fazendo as consultas. “Estamos aguardando uma reunião com a juíza para ver o que pode ser feito.” Ele diz que tudo continua do mesmo jeito. “Continuam restringindo o motorista porque está no SPC ou porque teve uma pendência com a Justiça e foi absolvido. Um companheiro teve uma briga com um vizinho em 1999 e até hoje não consegue carregar.”
Fontela afirma que o sindicato recebe cerca de 30 queixas por mês.
Gristec diz para gerenciadoras “seguirem a lei”
O diretor de Planejamento e Estratégia da Associação Brasileira das Empresas de Gerenciamento de Riscos (Gristec), Ruy Gouvêa, diz que a orientação da entidade para suas afiliadas é clara: “Sigam a lei”. Mas como cada empresa tem sua autonomia, ele não sabe o que elas fazem.
Para Gouvêa, a maioria das empresas utiliza informações “focada no desempenho, na compatibilidade da capacitação profissional do motorista com o tipo de carga a ser transportado”. E pode ser que, nessa análise, a gerenciadora não considere um motorista adequado para determinado embarque. “O que não implica que seja uma recusa à condição do trabalho dele. Porque no mesmo dia, na mesma gerenciadora, para outro tipo de carga, ele pode perfeitamente ser recomendado”, declara.
Gouvêa argumenta que sempre haverá necessidade de se consultar o perfil do motorista. “Se você entregar hoje um bem de R$ 1 milhão a um caminhoneiro que você nunca viu na sua vida, que critérios usaria para garantir à seguradora que você está escolhendo o melhor profissional, o mais sério, o mais honesto?” Aí é que, segundo ele, entram as gerenciadoras. “O cadastro pode gerar reclamações de alguns, mas é um documento que valida a competência e permite a muitos fazerem embarques em qualquer ponto do País mediante uma simples consulta à gerenciadora de risco”, argumenta.
Câmara de Mediação resolve conflitos
Para os casos de reclamações de caminhoneiros autônomos contra gerenciadoras de risco, uma Câmara de Mediação e Conciliação, criada em 2010 pela Gristec e o Sindicam-SP, tem ajudado a solucionar muitos problemas. “Temos cinco mil casos solucionados e outros tantos bem encaminhados. Eu diria que a Câmara praticamente zerou os encaminhamentos de casos à Justiça em São Paulo”, afirma Ruy Gouvêa.
A Câmara foi montada após o Sindicam mover uma ação que resultou na primeira condenação de uma gerenciadora de risco no País. O processo foi lento e desgastante, segundo o diretor do sindicato Bernabé Rodrigues, o Gastão. Hoje, a entidade prefere negociar com essas empresas. Segundo ele, as reclamações dos caminhoneiros que chegam até o Sindicam são resolvidas por meio de contatos com as gerenciadoras. “É só a gente fazer o contato com a empresa que elas tiram imediatamente o nome dos caminhoneiros”, garante. Questionado então sobre o porquê de essas empresas insistirem em continuar fazendo as consultas, ele preferiu não responder.
Já o diretor da Gristec afirmou que “não é que todo caso que vai para a Câmara é liberado”. São analisados um a um. “E o próprio Sindicam tem recomendado aos motoristas que, na impossibilidade de transportar ouro, aceitem levar outra mercadoria”, ressalta Ruy Gouvêa.
O caminhoneiro que precisar de ajuda relacionada às gerenciadoras pode preencher a reclamação no site do Sindicam (www.sindicamsp.org.br). São atendidos motoristas de todo o Brasil, sem custos. Em breve, a Câmara terá sua própria página na internet.