A solução do agendamento de descargas de grãos no porto de Santos, imposta pelo governo aos exportadores, evitou este ano as longas filas de caminhões nas rodovias próximas ao porto. Mas os transportadores continuam pagando, com o seu tempo, pela falta de infraestrutura para armazenagem e movimentação da safra. Veja, nesta reportagem, como os exportadores fazem para manter os caminhões na sua função de “armazéns sobre rodas”, com grandes prejuízos para motoristas e transportadores

Jeyson Nascimento, Ralfo Furtado e Nelson Bortolin

Quem rodou pelas estradas nas proximidades de Santos nos primeiros meses do ano pode até pensar que o governo, com o sistema de agendamento de descarga no porto, conseguiu resolver o problema das filas de caminhões na época da safra. Mas é só aparência. Em Mato Grosso, o transportador continua sendo vítima da exploração de sempre. Os postos de combustíveis estão lotados de veículos de carga esperando serem chamados para descarregar. E agora também tem fila de caminhão vazio esperando para carregar, como pode ser visto em Sorriso. Sem contar o tempo que se perde com o troca-troca de notas fiscais.

Para completar, a novidade que tem o pomposo nome de Complexo Intermodal da América Latina Logística (ALL), de Rondonópolis, recém-inaugurado, oferece péssimas condições de trabalho para os estradeiros. Ali é que as cargas são transferidas para o trem. Como nos antigos terminais de Alto Araguaia e Alto Taquari, os motoristas continuam a amassar barro quando chove e a comer poeira quando sai o sol. Mas em Rondonópolis a ALL também organizou um sistema para evitar as filas… na rodovia.

Com mais de 30 anos de profissão, Sergio Ricardo, de Paranavaí (PR), esperou três dias, no Posto Ursão, a 25 quilômetros do novo terminal de Rondonópolis. Isso foi no final de março. “Agora temos que registrar a chegada em determinados locais para ser feito o agendamento. Não adianta ir direto ao terminal ou ao porto para tentar descarregar”, explicou. Ricardo ressaltou que cada trading tem uma cota de caminhões por dia para embarcar, seja na ALL, seja em Santos.

O EcoPátio, em Cubatão, quase vazio: uma das opções para fazer a última de uma longa lista de paradas

O paranaense Adelmo Mendes, 30 anos de estrada, reclama das paradas para troca de notas. Em cada troca, é pelo menos um dia de espera. Já Marcio Meurer, que ia carregar em Rondonópolis, reclamou que a vida ficou mais difícil com o agendamento. “Estou há 24 horas esperando para carregar. Dizem que tenho de esperar para não comprometer o sistema de agendamento.”

Eliseu Ribeiro, de Cuiabá, critica o agendamento: “A precariedade continua a mesma”

O motorista Eliseu Ribeiro, de Cuiabá, acha o sistema de agendamento “uma piada”. “As filas e a precariedade são as mesmas, só ficamos parados em outros lugares, diferentes dos de antes”, afirma.

Rogério D’Ávila discorda, em parte, de Eliseu. Ele diz que, este ano, não perdeu mais que 24 horas para descarregar na ALL – até o ano passado, chegava a esperar mais de três dias. Contudo, explicou que, apesar de fazer trechos pequenos, muitas vezes precisa trocar as notas fiscais do produtor uma ou até duas vezes ao chegar às tradings. “Sei que em grandes percursos são feitas mais trocas e aí o prejuízo do caminhoneiro é maior”, observou.

Filho de caminhoneiro e há 11 anos na estrada, Daniel Wengrat também está desanimado. “Agora tenho de parar mais vezes nos postos de combustíveis, que cobram pelo menos R$ 20 por dia para eu estacionar”, afirma.

No Complexo Intermodal da ALL, em Rondonópolis, o gerente Ivandro Paim assegura que o Sistema de Controle de Originação, que regula a quantidade de senhas liberadas para as tradings, funciona. Ele diz que há um controle rígido no acesso diário de veículos para as três áreas de espera do terminal, que comportam até 500 caminhões. Somente a área principal, para a qual se dirigem os caminhões agendados, é pavimentada. Segundo ele, as outras duas servem para acomodar os motoristas que chegaram antes ou depois do horário e para “contingenciamento”.

Na troca de notas, a chave para tomar tempo do transportador

Miguel Mendes, de Rondonópolis: as tradings deram seu jeito de atrasar a viagem

Troca de notas fiscais ao longo da viagem sempre houve no transporte de grãos. O diretor executivo da Associação dos Transportadores de Carga de Mato Grosso (ATC), Miguel Mendes, diz que é normal a primeira troca. “O caminhoneiro sai da fazenda com a nota do produtor e tem de trocar na trading”, afirma. E em algumas situações existe uma cooperativa entre o agricultor e a trading, o que obriga a fazer mais uma troca de notas.

O que há de novo nesta safra, segundo Mendes, é que, devido ao agendamento, as tradings muitas vezes mandam os caminhoneiros de um escritório a outro “para ganhar tempo”. “É aquela história de fazer do caminhão um armazém sobre rodas”, declara.

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas dos Transportes Terrestres de Rondonópolis e Região, Luiz Gonçalves da Costa, diz que as manobras das tradings com as trocas de notas transmitem a “falsa ideia” de que o sistema de agendamento de descargas é eficiente. “Não para o transportador”. E explica: “O motorista recebe a carga do produtor e, ao chegar à trading, tem que trocar a nota fiscal. Só então é feito o agendamento, que leva em consideração a viagem que será feita da trading até o terminal intermodal ou ao porto. Mas a viagem não começou na trading, e sim no campo. É nessa divisão da viagem em duas ou mais partes que as tradings tomam o tempo do motorista”. Para ele, o sistema “é uma fraude”.

A Carga Pesada questionou a entidade que representa as tradings, a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC), a respeito do assunto, mas não obteve retorno.

A fila, antes mesmo de chegar à roça

A Avenida Perimetral em Sorriso (MT) é um retrato do rearranjo logístico da safra. Ali, como em outras vias da cidade, existem filas de caminhões… vazios! Quem aguarda na via pública fica sujeito a ser multado pela prefeitura. “As tradings aproveitam que têm de esperar o agendamento e não autorizam a carregar. Assim, também se livram de pagar estadia”, afirma Vilson Rodrigues, presidente do sindicato dos autônomos, o Sindicam-Sorriso. Mas não é bem assim. A lei 11.442 diz que a estadia é devida a partir da quinta hora de espera para carga ou descarga, no valor de R$ 1 por tonelada/hora.

O incrível retrato da nova situação: em Sorriso, caminhões fazem fila vazios, antes mesmo de ir para a roça

Segundo Rodrigues, a espera, que pode ser de três dias, vale para quem vai carregar nos armazéns da cidade ou na roça. Além das ruas, os postos de combustíveis ficam cheios de caminhões. De acordo com o sindicalista, depois de carregar, os motoristas ainda vão esperar mais um pouco, pela troca de notas…

No pátio dos “sem-terra” da ALL, uma situação desumana

Com 25 anos de estrada, Rodolfo Manoel fala do seu descontentamento com o pátio dos “sem-terra” – uma das áreas da ALL em Rondonópolis que foram preparadas para receber caminhões. Com a chuva dos primeiros meses do ano, vieram a lama e o mau cheiro. O problema levou a uma manifestação feita por mais de 300 motoristas no dia 21 de março. Everaldo Maeda Candeias participou. “É desumano a gente ter que caminhar no meio da lama e aguentar o mau cheiro da soja que cai e apodrece”, ressalta. Ele também se referiu à precariedade dos banheiros e dos refeitórios do terminal.

Além do que se vê na foto, o problema no pátio da ALL é o mau cheiro da soja que cai e apodrece

As queixas dos caminhoneiros foram confirmadas pelo Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso, que em março propôs um termo de acordo à ALL, cobrando melhores condições sanitárias, ambientais e de conforto nos locais de espera dos motoristas. Os fiscais recomendaram a implantação de uma série de melhorias no local e deram 60 dias para a sua execução.

Até Santos, várias etapas a queimar. E gastos para fazer

A Carga Pesada também foi verificar como se dá o desembarque da safra que chega de caminhão à Baixada Santista. Realmente, as filas que nos outros anos começavam no rodoanel, perto de São Paulo, desapareceram. “Só tiraram o problema da estrada, saiu da vista. Mas a demora continua”, diz o caminhoneiro Jean Oliveira, de Goiás. Ele e um colega da Transportadora Mandacari, de Rio Verde, carregaram soja em Mineiros (GO) e estavam num estacionamento em Cubatão quando conversaram com a reportagem.

Jean Oliveira (à esq.): em cada etapa, uma longa espera para começar a próxima

Segundo Jean, a viagem se dividiu em várias etapas. Primeiro, eles foram até Sumaré (SP), onde existe um agendamento para descarregar em Santos, da T-Grão. Chegaram às 16h30 e foram liberados para seguir viagem às 5h40 do dia seguinte, até Cubatão, onde caminhões esperam a chamada para descarregar em Santos. Ali existem estacionamentos para caminhões. Que são pagos, diga-se: o do Jean e seu colega custa R$ 40 por seis horas e mais R$ 2,50 por hora adicional. Às 10 horas, estavam em Cubatão, e às 5 da tarde continuavam esperando o “sinal verde” para tocar para o porto, no último dia 5 de abril.

Mais sorte tiveram os autônomos Reginaldo Vieira de Souza e André Luiz e Reginaldo, de Campo Grande (MS), que carregaram em Sorriso (MT), e também tiveram de parar na triagem em Sumaré. Chegaram lá ao meio-dia e foram liberados às 2 horas da madrugada. Era um comboio de quatro caminhões e deveriam se apresentar no Rodopark, em Cubatão, às 9 horas, mas tiveram problemas na estrada: um caminhão quebrou e acabaram chegando às 10h30. Mas estavam conversando com a reportagem quando o alto-falante do estacionamento anunciou, às 16h40, que eles foram agraciados e podiam seguir para o terminal da T-Grão no porto de Santos. Despedidas rápidas, saíram felizes da vida.

Reginaldo (à esq.) e André Luiz: depois de seis horas, chamada para descarregar

No EcoPátio, outro estacionamento de espera em Cubatão, o preço é mais alto: R$ 45 por seis horas e R$ 5 por hora adicional. “Não importa se você ficar só uma hora ou duas, são R$ 45 do mesmo jeito pelas primeiras seis horas”, explica o motorista José Almeida Queiroz, de Lucélia (SP). “Pior: você é obrigado a usar o estacionamento se estiver carregado, senão, não descarrega lá no porto. É como uma rede de pedágio, talvez o mais caro do Brasil. Tanto que o EcoPátio é administrado pela concessionária EcoVias”, acrescenta.

Transporte da safra vai se prolongar

O sistema de agendamento de descarga para evitar filas nas rodovias vai levar a um prolongamento das safras, segundo dois dos maiores transportadores de grãos do País, Cláudio Adamuccio e Dirceu Capeleto. O escoamento da produção do Centro-Oeste, antes concentrado em fevereiro e março, agora tende a se distribuir por mais meses.

Na visão de Adamuccio, diretor do Grupo G10, de Maringá (PR), depois de um 2013 de filas quilométricas, as autoridades acharam por bem tomar providências. A principal foi a implantação do sistema de agendamento de desembarque em Santos, a exemplo do que já existe há alguns anos em Paranaguá. Em caso de descumprimento, as tradings ficam sujeitas a multas salgadas. “Como não podem mais deixar o caminhão esperando lá no destino, também não têm pressa de carregá-lo. Assim, deixam de pagar diárias”, diz o empresário, para quem “novamente o transportador paga a conta”.

De acordo com ele, a safra deste ano provou que não faltam caminhões no Brasil e isso pode inclusive desestimular as vendas desses veículos. “Antes, quando não eram fiscalizadas, as tradings ficavam loucas para mandar toda a soja de uma vez. E aí havia a falsa sensação de que não tínhamos caminhões suficientes. Agora, elas têm cotas máximas de embarque diário, de acordo com seus contratos de venda. E muitas vezes sobram caminhões na origem”, declara.

Com menos embarques, os fretes não atingiram os mesmos níveis do ano anterior. “Teremos trabalho por mais meses, de modo que o frete não vai subir tanto nem cair tanto. Antes, um frete de R$ 100 chegava a R$ 140 no pico de safra e baixava a R$ 70 na entressafra. Subia muito e descia muito. Agora vai subir a R$ 120 e baixar a R$ 90”, estima.

Já Dirceu Capeleto, da Bergamaschi, de Rondonópolis, ressalta que o terminal da ALL de Rondonópolis também tem agendamento e o Ministério Público “está em cima” cobrando seu cumprimento. “A Cargil, por exemplo, me disse que estava com uma cota de apenas 35 desembarques por dia”, informa.

Para ele, além da fiscalização, há outros motivos para a ausência de filas nas estradas perto do terminal de Rondonópolis. “Por Araguari, a Vale está levando mais soja (até o Porto de Vitória) que nos outros anos.”

Além disso, segundo Capeleto, a Bunge e a Maggi estão indo “a todo o vapor” para Miritituba, no Pará. “Neste ano, vão com um milhão de toneladas e no ano que vem já com cinco milhões”, declara. Em Santarém, onde só a Cargil tem terminal, os embarques também estão crescendo.

O fato de o novo terminal da ALL se localizar em Rondonópolis, que é um importante centro urbano de Mato Grosso, também tem impacto no fim das filas. “Aqui, os sindicatos estão em cima, o Poder Público chega mais rápido que em Alto Araguaia”, explica. Por último, Capeleto diz que o armazém da Noble, ao lado do da ALL, também está prestando serviço de transbordo da soja para as tradings.

Da mesma forma que Adamuccio, Capeleto afirma que o frete dará uma rentabilidade média razoável, mas não tão boa quanto a do ano passado, “porque os custos vêm subindo bastante”.