Nelson Bortolin,
Chico Amaro e Guto Rocha
Nunca antes na história da Carga Pesada um assunto publicado no nosso site chamou tanto a atenção. O assunto é a lei 12.619, que colocou limites na jornada de trabalho de motoristas profissionais do transporte de cargas e passageiros e definiu formas para fiscalizar o cumprimento desses limites.
Foram milhares de acessos às notícias nas diversas ocasiões em que falamos da lei – principalmente quando ela foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, em 2 de maio, e depois no texto “Lei do motorista ‘é pra valer’, diz advogado do Setcepar”, de 5 de junho. Havia uma sede muito grande de explicações sobre a novidade – explicações que também demos no site, no texto “Lei que regulamenta profissão de motorista já está em vigor”, de 18 de junho.
Ao mesmo tempo, muitos motoristas nos escreveram, a maioria criticando a lei, desconfiados de que, por causa dela, vão ganhar menos, e alguns aprovando, dizendo que, finalmente, os motoristas conquistaram direito ao sagrado descanso, à saúde e a ficar um pouco com a família, como qualquer outro trabalhador .
Isso tudo aconteceu de 2 de maio para cá, a lei entrou em vigor no dia 16 de junho, e até agora ninguém veio a público para informar de algum grave prejuízo que motoristas tenham sofrido por causa dela. É certo que a fiscalização por parte dos órgãos de trânsito está prevista para começar só em 29 de julho, mas as primeiras notícias são no sentido de que as empresas transportadoras (pois a lei impõe obrigações principalmente a elas) estão procurando meios de cumprir com a parte delas.
Melhor assim. A lei trata fundamentalmente dos direitos e deveres do motorista empregado. Seus direitos, claramente estabelecidos no texto, dizem respeito ao descanso e à saúde: não devem ser obrigados a trabalhar mais que 10 horas por dia (oito regulares e duas extras), de forma a não exceder 56 horas semanais (44 regulares e 12 extras), e têm direito a usufruir um dia de descanso semanal, como a CLT prevê para qualquer trabalhador. Se a viagem for longa, a lei também diz quais são os direitos e obrigações. Também não podem passar mais que quatro horas seguidas ao volante, tendo que parar por pelo menos meia hora ao fim desse tempo. Têm direito a uma indenização 30% superior ao valor da hora trabalhada quando precisarem ficar esperando para carregar ou descarregar fora dos horários de exercício do trabalho ou do descanso. É seu dever obedecer o limite da jornada de trabalho e o de descanso.
A novidade mais importante da lei, porém, está nesta frase, curta e direta: é dever do motorista “submeter-se a teste e a programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica, instituído pelo empregador, com ampla ciência do empregado”.
Isso quer dizer que a empresa tem que ter um programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica, e o empregado é obrigado a se submeter a esse programa. Aí está uma inversão da lógica presente nas blitze de trânsito nas grandes cidades, nas quais quem quiser pode se recusar a fazer o teste do bafômetro, com base no direito de não produzir prova contra si próprio. No caso da lei 12.619, o assunto não é “de polícia”, mas sim de saúde e segurança – e o teste é obrigatório. Testes quanto ao uso de drogas e álcool já são feitos por pilotos de avião, por determinação da Agência Nacional de Aviação Civil, pelo mesmo motivo: a saúde do piloto é essencial para a segurança dos que viajam com ele.
Esse item cria a obrigação da empresa de realizar, regularmente, os testes de uso de drogas e de bebida alcoólica com os motoristas. E se um resultado der positivo, o problema tem que receber a atenção da empresa, que não poderá mandar o motorista para a estrada como se aquilo não estivesse acontecendo. De parte do motorista, está na lei: ele não pode se recusar a se submeter ao teste e ao programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica. A recusa será considerada “infração disciplinar, passível de penalização”.
Digamos que essa frase curta resume o espírito da lei e diz o que é que se pretende com todas as outras regras: evitar que motoristas andem por aí se drogando ou se alcoolizando, na direção de veículos de carga, para cumprir horários desumanos sob pena de perderem comissões; e chamar à responsabilidade as empresas transportadoras que até estimulam essa situação.
A lei 12.619 é fruto, entre outras coisas, de uma intensa campanha do Ministério Público do Trabalho para dar um basta nesse problema, que é antigo e conhecido, mas que, até agora, estava em segundo plano na atenção das autoridades e demais envolvidos.
Um personagem que teve um papel importantíssimo para esse desfecho foi o procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, que hoje trabalha em Campo Grande (MS).
Em 2007, Moraes fez duas pesquisas de exame de laboratório e entrevistas com motoristas de caminhão, em Diamantino e Rondonópolis (MT), num total de mais de 200 amostras, e encontrou números assim: 15% deram positivo para cocaína, 8% para rebite (anfetaminas), 31% dos motoristas disseram que trabalhavam mais de 16 horas por dia…
Com base nesses dados, e vendo que as transportadoras, notificadas por ele, não queriam tomar providência nenhuma, o procurador obteve uma sentença do juiz do Trabalho de Rondonópolis obrigando as empresas a fazerem os motoristas cumprirem no máximo 10 horas por dia, com pagamento de horas extras. A liminar foi logo cassada pelas entidades empresariais, mas naquele momento ficou claro, com as provas levantadas pelo procurador, que a situação não poderia continuar como estava.
A existência da lei 12.619 não é garantia de que a situação vá mudar da noite para o dia. Existe, agora, a necessidade de construir uma nova situação, o que dependerá das empresas, dos motoristas (inclusive os autônomos), dos sindicatos de empregados, do Ministério Público do Trabalho e da própria Justiça do Trabalho, sem contar as autoridades responsáveis pela segurança do trânsito. Falta infraestrutura a ser implantada, como estacionamentos para caminhões nas rodovias, e não há indicação de quem irá fazê-la.
Mas a partida está dada. A nova viagem já começou.