Existem muitas vagas abertas para motoristas no transporte de cargas – e poucos candidatos para preenchê-las. Investigando esta situação, a Carga Pesada fez um levantamento dos prós e contras da profissão de caminhoneiro. Nesta reportagem, o passado e o presente se encontram, de forma que o leitor caminhoneiro encontrará, nas próximas páginas, caminhos para crescer na atividade. E aquele que está procurando o que fazer na vida poderá refletir sobre a pergunta: vale a pena ser motorista de caminhão?

Guto Rocha

Os motoristas costumam reclamar, mas o pessoal de recursos humanos das empresas tem certeza de que o fator que mais atrai profissionais para o transporte rodoviário de cargas é o salário. Por uma razão muito simples: levando em conta a escolaridade exigida (em geral, 1º grau completo), o salário da categoria é um dos mais altos do mercado.

Essa é a constatação da psicóloga e diretora do Centro de Treinamento e Qualificação no Transporte do Grupo G10, de Maringá (PR), Adriana Calvo. “É pelos bons salários que muita gente ainda quer ser caminhoneiro. E muitos que deixaram a profissão acabam voltando, porque não conseguem o mesmo ganho em outro lugar”, diz ela.

Marcos Antônio do Nascimento e os demais entrevistados: profissão envolve desafios diários

O problema, segundo Adriana, é que os ganhos razoáveis dos motoristas de caminhões de cargas também atraem aventureiros. “Muitos não têm consciência do que esse trabalho realmente exige. Por isso falta gente capacitada.”

Além do salário, tem o sonho. Muita gente traz da infância a vontade de ser motorista de caminhão, e entrar na atividade representa uma realização pessoal enorme, difícil de ser encontrada em outras profissões. É o que diz a coordenadora pedagógica da Binotto S/A, Márcia Senger da Silva, responsável pela formação e qualificação de motoristas da empresa. “Temos motoristas que fizeram faculdade para agradar a família, mas depois vieram trabalhar naquilo que sempre sonharam”, afirma.

Salários razoáveis, sonhos realizáveis… A psicóloga Adriana, do G-10, acrescenta outro fator à opção por ser caminhoneiro: “Em geral, é uma pessoa que não consegue ficar parada em casa. Até sente saudade da família quando está na estrada, mas não aguenta ficar muitos dias parado no mesmo lugar. Sem essa característica, muitos que tentam ser caminhoneiros acabam desistindo”.

O outro lado dessa moeda diz respeito à atitude e às qualidades técnicas que uma pessoa tem que ter para entrar na profissão. De início, afirma Adriana, “a pessoa deve saber o que é direção defensiva e deve estar livre do álcool e outras drogas”. Isso é o mínimo que se exige de um “profissional consciente da responsabilidade exigida pela função”. E tem mais: tem que saber usar bem o caminhão, respeitando as orientações do fabricante para gastar menos pneus e combustível.

Aí o bicho começa a pegar… Aparentemente, não existe muita gente interessada em ir atrás da qualificação necessária para ser caminhoneiro. É o que se vê na escola da Fabet (Fundação Adolpho Bósio de Educação no Transporte), em Mairinque (SP) e Concórdia (SC), onde existem vagas sobrando. Segundo a gerente Salete Marisa Argenton, a primeira turma paulista, no início do ano, só formou 16 alunos. Havia 40 vagas.

Salete diz que surgem poucos motoristas novos, e as empresas têm investido na requalificação dos antigos. “Senão a empresa perde posição a cada dia”, comenta. Na visão dela, hoje em dia está bem mais difícil realizar o sonho de ser caminhoneiro, mesmo com a baixa exigência de escolaridade: “Os caminhões trazem uma tecnologia embarcada que exige bons conhecimentos para operá-la. Sem contar os valores envolvidos na operação: um caminhão custa até R$ 500 mil e certas cargas ultrapassam R$ 1 milhão. É preciso preparo para cuidar de tudo isso, observando aspectos de segurança, cuidados com o meio ambiente etc.”

Não é fácil, mesmo para quem já está na profissão. Na Binotto, são oferecidos cursos para quem deseja entrar na empresa, tendo ou não experiência. A coordenadora pedagógica Márcia Senger da Silva diz que é comum encontrar profissionais com a autoestima baixa. “Acostumaram-se a pensar que seu trabalho vale pouco. Mas a gente mostra que, sem eles, a empresa não existiria. Quando passam a acreditar nisso, o resultado das aulas práticas melhora e eles se tornam mais responsáveis.”

Empregadores deveriam dar a qualificação

“Não faz muito tempo, o motorista de caminhão era visto até como um artista, bastante valorizado. Agora, a profissão sofre com a falta de reconhecimento de sua importância para o país.” São palavras do presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transporte Rodoviário de Cargas Secas e Molhadas de São Paulo e de Itapecerica da Serra (Sindicargas-SP), Natalício Ferreira Alves.

“Hoje, a profissão exige muita qualificação. Mas as empresas não cuidam nem de treinar quem já está lá. Quando o jovem vê que precisa estudar tanto quanto um funcionário da área administrativa para ser motorista de caminhão, ele acaba optando pela atividade mais segura”, prossegue Alves. O salário inicial, na região coberta pelo Sindicargas-SP, é de R$ 1.238,78 para bitrem (sete ou mais eixos), R$ 1.077,30 para carretas e R$ 981,28 para truck/toco.

REQUALIFICAÇÃO – O engenheiro mecânico Rubem de Melo, diretor da empresa de inspeção veicular Transtec Ivesur, de Curitiba (PR), fala na mesma direção de Natalício Alves: “As empresas têm que investir na requalificação de seus motoristas. Desde 1998, quando começaram a circular os bitrens, os veículos não pararam de evoluir, e os motoristas não acompanharam”.

Mais um reforço a esse ponto de vista é dado pelo diretor da Escola de Transportes, de São Paulo (SP), João Batista Dominici. Ele diz que a própria legislação deveria ser mais rigorosa para autorizar alguém a dirigir determinados veículos. “O caminhoneiro acaba aprendendo na prática do dia a dia”, comenta, destacando a importância de escolas como a Fabet.

Tudo isso tem a concordância do presidente do maior grupo de transportadores de grãos do Brasil, o G10, de Maringá (PR), Cláudio Adamucho, mas ele atribui ao Sest/Senat a maior responsabilidade pela formação de motoristas de caminhão no Brasil. “Eles só oferecem cursos como o de direção defensiva e não cuidam da qualificação do motorista propriamente dita”, afirma.

Adamucho estima que faltem 200 mil motoristas capacitados no Brasil, para uma frota de 1,9 milhão de caminhões. E diz que, pelo menos em relação à remuneração, as empresas estão fazendo sua parte. De acordo com ele, o ganho mensal de um motorista do G10 gira em torno de R$ 2 mil, além de benefícios como plano de saúde e auxílio-alimentação. “O salário básico é de mais ou menos R$ 1 mil, mas eles recebem hora extra ou comissão”, completa.

Do caminhão ao ônibus: Leocardes gostou

Depois de nove anos dirigindo caminhão, Leocardes Jardins dos Santos mudou de veículo: há quatro meses, ele dirige ônibus na Viação Garcia, de Londrina. “O salário é quase o mesmo, mas a condição de trabalho é muito melhor”, afirma. Seu sindicato diz que o piso da categoria é de R$ 1.240.

Leocardes dirigia um bitrem. “Chegava a trabalhar 20 horas por dia. Não tinha salário fixo e precisava esticar a jornada para garantir uma comissão mais gorda”, comenta.

Nos ônibus, as jornadas são menores e ele tem folga uma vez por semana. “Trabalho sete horas e 20 minutos por dia. Se a viagem dura mais, fazemos a ‘ponte’: trocamos o posto (direção) com um colega e vamos para o alojamento descansar. Coisa decente, com ar condicionado.”

Leocardes diz que se sente mais valorizado agora. “Caminhoneiro enfrenta muito preconceito. Olham torto quando você entra num restaurante, e até na hora de carregar tratam você de qualquer jeito. Agora trabalho uniformizado. Parece besteira, mas faz uma diferença grande para quem olha para você.”

Ele afirma que, para conseguir a nova vaga, teve que fazer curso de transporte coletivo de uma semana no Sest/Senat. Já para dirigir o bitrem bastou ter a carteira E. “Aprendi observando outros caminhoneiros e com a prática.”

Piloto de avião ganha R$ 10 mil

Não é fácil entrevistar piloto de avião: as companhias não autorizam. Mas um comandante de voos domésticos da TAM nos informou que ganha em torno de R$ 10 mil. Queixou-se, porém, da distância da família: “Não vi a primeira comunhão da minha filha”. Mas está feliz na profissão.

Piloto de avião não precisa de rebite… Existe lei que regulamenta a atividade (7.183) e os sindicatos fiscalizam.

Segundo a TAM, as jornadas de trabalho variam assim: dentro do país, o limite é de 11 horas, e a tripulação conta com um piloto e um copiloto; nos voos internacionais, se a jornada for de 11 horas, o profissional voa 9h30 com um limite de cinco pousos; na jornada de 14 horas, ele voa 12 horas e tem no máximo seis pousos (neste caso, são dois comandantes e um copiloto); para as jornadas de 20 horas, são 15 horas de voo e quatro pousos, com dois pilotos e dois copilotos.

O tempo de descanso depende das jornadas. Após 12 horas, os pilotos descansam 12 horas. Quando o trabalho fica entre 12 e 15 horas, eles repousam 16 horas. Nas jornadas acima de 15 horas, o descanso é de 24 horas.

FALA, CAMINHONEIRO

Fabiano Oliveira dos Anjos, 27, de Araucária (PR), casado, três filhos, salário de R$ 1,5 mil líquido, mais vale-compras de R$ 200 e plano de saúde. Puxa carretas de 19,5 m com um Scania P340

“Sempre ouvi dizer que a vida de motorista era dura, mas eu queria sair para o mundo. Hoje viajo por todo o País. O risco faz parte, temos que ter muito cuidado sempre, mas o perigo também está presente em outras profissões. Controlo bem minha carga horária. Tem gente que come rebite e acaba se matando. Eu procuro parar, esticar as pernas e descansar a cada 200 km. Estou realizado na profissão.”

Ivon Augusto, 60, de Umuarama (PR), casado, salário de R$ 1,5 mil líquido e R$ 25 de diária para alimentação, que ele procura economizar: “Minha mulher prepara uma marmita caprichada e lanches para a viagem”

“Gosto mesmo é da estrada. Até mudei, houve um período em que só fazia entregas na cidade. Mas não durou nem um mês. Eu me considero um profissional de sorte. Já ouvi tantas histórias e vi tantos acidentes… Mas nunca tive problemas, nem com ladrões. É comum eu ter que trabalhar de 12 a 13 horas por dia. Mas, se o sono aperta, eu paro e durmo. Não faço barbaridades como muita gente que anda por aí.”

Manoel Roberto Pereira, 35, de Mogi Guaçu (SP), salário bruto de R$ 960 mais 6% de comissão sobre o frete

“Éramos três irmãos caminhoneiros, além de um cunhado. Mas esse cunhado, que foi quem nos ensinou a profissão, morreu num acidente. Daí a gente fica pensando… Um dos meus irmãos já desistiu da estrada. Eu também vou parar, vou abrir uma oficina mecânica para automóveis com ele. Tem semana em que só consigo dormir quatro horas por noite. Acho que o risco não vale a pena.”

Gilberto Nicacio, de Peritiba (SC), casado, um filho, salário de R$ 2.400 – mas as despesas, nas viagens, são por conta dele

“Comecei dirigindo caminhões pequenos, mas fiz o curso da Fabet e passei para os grandes. A vida na estrada é assim: ou você paga R$ 10 por refeição e ganha meia hora para descansar, ou faz você mesmo a sua comida ‘na caixa’ e demora uma hora e meia para deixar tudo limpo depois. O meu dia começa às 5 horas e termina à meia-noite, quando o caminhão é bloqueado automaticamente.”

Neivo José Testa, 53, de Chapecó (SC), casado, viajante internacional, tem ganhos de R$ 3 mil mensais, mais R$ 13 por dia para alimentação e prêmio de incentivo de R$ 600, se cumprir todas as regras da boa direção e do bom relacionamento com os clientes

“Eu aprendi a dirigir trator numa fazenda perto do sítio do meu pai. Então escolhi ser caminhoneiro porque era uma profissão boa, mas hoje está mais cansativa. Mesmo assim, tenho que continuar, pelo menos até abril de 2011, para pagar a mensalidade da faculdade da minha filha. Também já trabalhei em escritório de transportadora, controlando os outros caminhoneiros, mas não gostei e voltei para a estrada.”

Elton Carlos Schneider, 43, de Chapecó (SC), salário de R$ 3 mil mensais, transportador de frutas do Chile e da Argentina para o Brasil

“Todo motorista deveria receber salário fixo. Esse negócio de ganhar comissão, porcentagem do frete, deveria ser proibido. O sujeito mata uma família na estrada para cumprir horário e ganhar comissão. Eu também já fiz coisas que não deveria. Por cinco anos toquei um ‘rapidão’, caminhão com dois motoristas que se revezam e nunca para. Nessa época, tomava rebite. Mas digo aos jovens: não façam isso.”

José Emílio Deuster, 60, de Belo Horizonte, separado, ganha R$ 50 por entrega. Nunca teve caminhão próprio, mas mora no caminhão, onde cozinha e dorme. Diz: “Minha família são os colegas que encontro nos pátios. Sou bem feliz assim”.

“Aprendi a dirigir por conta própria. Meu pai era da estrada, e meu filho, que tem 27 anos, também já é. Para tirar a carteira, no meu tempo, você tinha que saber bastante sobre mecânica. Aprendi na autoescola, mas depois não fiz mais nenhum curso dirigido a motoristas. Minha vida, atualmente, é fazer entregas em supermercados. Passo o dia inteiro esperando nas filas.”

José Roberto Silva, 38, de Itapeva (MG), casado, sem filhos, ganha “mais de R$ 2.500” por mês

“Virei caminhoneiro por conta da selvageria própria dos 18 anos… Meu pai era contra, mas eu queria liberdade. Mas este ano encerro a carreira. Tenho minhas rendas e vou voltar a estudar. Faculdade de Filosofia. Para mim, o pior da profissão de motorista é que nela você estaciona: só usa a força, não a cabeça. Já as estradas estão mais perigosas, têm mais trânsito. Há muita gente sem experiência andando aí.”

Valdir Lopes, 37, de Itapeva (MG), casado, três filhos, ganhos de R$ 2 mil mensais, “às vezes um pouquinho mais”

“Meu pai nunca mexeu com caminhão. Eu fiz a escolha porque a gente não tem estudo e no caminhão se pode ganhar um pouquinho mais. Mas está ficando cada vez mais difícil trabalhar. Há muita concorrência, muita criançada tira a carteira e trabalha por qualquer salário. Essa molecada não tem respeito no trânsito. A vida é dura. Dorme-se pouco, a convivência com a família é mínima. Vida da caminhoneiro é assim.”