Chico Amaro
Hoje (18) é o primeiro dia útil de vigência da Lei 12.619, que visa regular e disciplinar a jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista profissional do transporte rodoviário de cargas e de passageiros.
Embora tenha sido publicada há um mês e meio, muita gente ainda não conhece os termos da lei. E mesmo quem conhece pode estar com dificuldades para interpretar como deve ser feita a sua aplicação. A Carga Pesada tem recebido algumas consultas a esse respeito. As novidades são muitas.
O texto abaixo está longe de ser um “manual” sobre a lei. É uma tentativa da nossa reportagem de informar e oferecer uma interpretação a respeito das normas que pretendem dar uma nova disciplina ao trabalho dos motoristas profissionais.
Os do transporte de cargas de longa distância, principalmente, estão há muito trabalhando em condições precárias, submetidos a uma grande pressão de tempo, colocando em risco a própria vida e a vida dos outros, em frequentes acidentes de trânsito.
Este texto segue o roteiro da própria lei, de acordo com o que foi transmitido, em Londrina, pelo advogado César Esmanhotto, do Setcepar, em palestra para representantes de empresas de transporte, advogados trabalhistas e outros interessados. Isso não quer dizer que todas as colocações feitas abaixo são uma reprodução do que foi dito por Esmanhotto, ou traduzem perfeitamente o pensamento dele. Alguma coisa é resultado da busca, pelo repórter, de uma resposta própria a um pensamento resultante da explanação feita por Esmanhotto.
Como disse o advogado Esmanhotto, a Lei 12.619 é fruto de um trabalho conjunto de empresários e sindicatos de empregados do transporte rodoviário de cargas e de passageiros, com a participação de representantes do Ministério Público do Trabalho, visando à melhoria das condições de trabalho e de vida dos motoristas profissionais. Daí que todos devem se sentir comprometidos com o seu cumprimento, empregados, patrões e também os autônomos (leia sobre a situação que levou à aprovação da lei clicando aqui).
Apesar disso, é possível que haja dificuldades para a aplicação plena da lei, por falta, principalmente, dos pátios de estacionamento para caminhões para descanso dos caminhoneiros. Essa é uma infra-estrutura necessária, existente em países cujas leis inspiraram a nossa, mas o governo preferiu se omitir nesse assunto, eliminando do texto aprovado qualquer menção aos pátios de estacionamento. O assunto ficará em suspenso, não se pode saber por quanto tempo.
A seguir, os esclarecimentos sobre a Lei 12.619.
MUDANÇAS NA CLT E NO CÓDIGO DE TRÂNSITO
A lei tem apenas sete artigos. O projeto aprovado na Câmara e no Senado tinha 12, mas a presidente Dilma Rousseff fez um total de 19 vetos (somando os artigos inteiros, os parágrafos e os itens). O veto mais importante diz respeito à instalação de pátios de estacionamento de caminhões em rodovias, para que os motoristas possam descansar.
Pode-se dizer que a lei está dividida em duas grandes partes: a primeira traz modificações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e se refere ao trabalho do motorista empregado; a segunda altera o Código de Trânsito Brasileiro e, por isso, se aplica também aos autônomos. Comecemos com a parte do motorista empregado.
CONTROLE DA JORNADA DE TRABALHO
No Artigo 2º, que fala dos direitos do motorista profissional (empregado), dois itens chamam a atenção. Um coloca como direito do motorista “ter a jornada de trabalho e o tempo de direção controlados de maneira fidedigna pelo empregador, que poderá valer-se de anotação em diário de bordo, papeleta ou ficha de trabalho externo (…) ou de meios eletrônicos idôneos instalados nos veículos, a critério do empregador”. Aí já está definido, portanto, que existem quatro modos de controlar a jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista: pela simples anotação de horários que ele faça num diário de bordo, em papeletas ou em fichas de trabalho externo (tudo como prevê a CLT), ou por “meios eletrônicos instalados no veículo”. As empresas de ônibus em geral já adotam esses sistemas. O empregador é que vai escolher a forma, mas fica claro que é dever dele oferecer meios para o motorista registrar a sua jornada de trabalho e seu tempo de direção. E o motorista é que anota ou assina o relatório do trabalho que realizou, como acontece em qualquer outro tipo de atividade realizado por empregados em empresas (através, por exemplo, do cartão-ponto).
O outro direito a ser destacado, no Artigo 2º, é o do seguro para o motorista empregado, pago pelo empregador, destinado à cobertura dos riscos pessoais próprios da atividade, no valor mínimo correspondente a 10 (dez) vezes o piso salarial da categoria ou em valor superior fixado em convenção ou acordo coletivo de trabalho. Há empresas que já oferecem esse seguro, mas agora é obrigatório.
DEVERES DO MOTORISTA
O Artigo 3º trata de mudanças na CLT, criando a Seção IV-A, que aborda especificamente o serviço do motorista profissional. São incluídos vários artigos novos na CLT, com a numeração 235-A, 235-B, 235-C etc.
O Artigo 235-B estabelece, em sete itens, os deveres do motorista. Um muito importante diz que é dever do motorista “respeitar a legislação de trânsito e, em especial, as normas relativas ao tempo de direção e de descanso”. Lembrou o advogado César Esmanhotto, em sua palestra em Londrina, que, dessa forma, o motorista empregado tem obrigação de respeitar as normas de tempo de direção e de descanso, tanto quanto é obrigação da empresa dar condições para o cumprimento dessas normas. O motorista terá que responder pelos seus atos.
CONTROLE DE USO DE DROGAS E BEBIDA ALCOÓLICA
Outro item do Artigo 235-B, o número 7, traz uma grande novidade. Diz que é dever do motorista “submeter-se a teste e a programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica, instituído pelo empregador, com ampla ciência do empregado”. A frase é curta e direta, mas tem uma série de implicações.
Em primeiro lugar, essa norma inverte a lógica presente nas blitz de policiais de trânsito nas grandes cidades, nas quais muitos motoristas se recusam a fazer o teste do bafômetro sob a alegação de que, de acordo com a Constituição, “ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si”. No caso da lei do motorista profissional, o assunto não é “de polícia”, mas sim de saúde e segurança da coletividade. Testes quanto ao uso de drogas e álcool já são feitos por pilotos de avião, por determinação da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil – pelo mesmo motivo: a saúde do piloto é essencial para a segurança dos que viajam com ele.
Esse item cria a obrigação para a empresa de fazer (às suas custas) os testes de uso de drogas e de bebida alcoólica pelos motoristas. Na mesma frase está escrito que tais testes devem fazer parte de um programa de controle de uso de drogas e de bebida alcoólica que seja conhecido do empregado. Em outras palavras: compete à empresa ter um programa voltado para as situações relacionadas com o uso de drogas e de bebida; dentro desse programa, ela deve verificar, periodicamente, se os seus empregados motoristas usam drogas e bebida alcoólica e, em caso positivo, devem dar um encaminhamento a essa situação que não seja algo como demissão por justa causa. De parte do motorista,está na lei: ele não pode se recusar a se submeter ao teste e ao programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica. A recusa será considerada “infração disciplinar, passível de penalização nos termos da lei”.
JORNADA DIÁRIA E DESCANSO SEMANAL
O Artigo 235-C dá as regras a respeito da jornada diária de trabalho. Começa dizendo que a jornada será a que está prevista na Constituição (8 horas diárias e até 44 horas semanais) ou a que for combinada em acordos ou convenção coletiva de trabalho (e que logicamente não poderá ser maior que a da Constituição). Outra regra igual à que vale para o trabalho dos empregados em geral: o motorista poderá fazer até duas horas extras, pelas quais ganhará 50% a mais que a hora normal (ou um valor estabelecido em acordo ou convenção coletiva).
TEMPO DE TRABALHO E INTERVALOS
Duas normas da maior importância vêm a seguir. Uma define o que é “trabalho efetivo do motorista”, isto é, qual é o tempo pelo qual ele deve ser pago pelo empregador: é todo o tempo em “que o motorista estiver à disposição do empregador, excluídos os intervalos para refeição, repouso, espera e descanso”. A outra diz quais são os intervalos a que o motorista tem direito de ficar sem trabalhar: no mínimo de 1 (uma) hora para refeição, 11 horas de repouso por dia (dentro de cada 24 horas) e descanso semanal de 35 (trinta e cinco) horas.
INDENIZAÇÃO DO TEMPO DE ESPERA
Pela primeira norma citada acima, vê-se que o tempo de espera (de carga ou descarga ou para fiscalização da carga em barreiras fiscais ou alfandegárias) não é considerado horas de trabalho efetivo. Mas também é diferente de hora de refeição, repouso e descanso. Cabe a pergunta: então o tempo de espera não será remunerado pelo empregador? A resposta é dada na própria lei, num parágrafo que diz que as horas relativas ao período do tempo de espera serão indenizadas com base no salário-hora normal acrescido de 30% (trinta por cento). Ou seja: o tempo de espera não é hora-extra, mas terá que ser indenizado em valor igual à hora normal mais 30%. Sendo indenização (e não salário), esse valor não soma na hora de calcular descontos para a Previdência, férias, 13º e outros benefícios associados ao salário do trabalhador.
Em suas explicações na palestra em Londrina, o advogado César Esmanhotto fez questão de dizer que não é qualquer tempo de espera que será indenizado, “mas apenas aquele que exceder a jornada normal de trabalho”. O que significa o seguinte: se o motorista, por exemplo, chegar de manhã, e o caminhão só for carregado à tarde, ele não terá direito à indenização, pois está recebendo seu salário normal para esperar. Por outro lado, disse Esmanhotto, se o motorista chegar à tarde e só for carregar na manhã seguinte, será computada como tempo de espera (e com direito a indenização) apenas a parte do tempo que não for abrangida pelo período de descanso (que pode ocorrer no próprio caminhão, quando ele estiver aparelhado para isso).
Já a segunda norma citada (sobre os intervalos para refeições, repouso e descanso semanal) pretende obrigar o motorista a descansar diariamente e lhe dá o direito ao dia de descanso semanal junto da família.
VIAGENS DE LONGA DISTÂNCIA
O Artigo 235-D trata das viagens de longa distância. Começa definindo: viagens de longa distância são aquelas em que o motorista permanece fora da base da empresa, matriz ou filial, e de sua residência, por mais de 24 horas.
Nesse caso, devem ser observadas as seguintes normas:
– intervalo mínimo de 30 minutos para descanso a cada quatro horas ininterruptas de direção, podendo ser fracionados o tempo de direção e o de intervalo de descanso, desde que não completadas as 4 (quatro) horas ininterruptas de direção;
– intervalo mínimo de uma hora para refeição, podendo coincidir ou não com o intervalo de descanso;
– repouso diário do motorista obrigatoriamente com o veículo estacionado, podendo ser feito em cabine leito do veículo ou em alojamento do empregador, do contratante do transporte, do embarcador ou do destinatário ou em hotel, ressalvada a hipótese da direção em dupla de motoristas da qual falaremos mais abaixo.
VIAGENS COM MAIS DE UMA SEMANA
O Artigo 235-E prossegue falando do transporte rodoviário de cargas em longa distância. Diz que:
– nas viagens com duração superior a uma semana, o descanso semanal será de 36 horas por semana trabalhada ou fração semanal trabalhada, e seu gozo ocorrerá no retorno do motorista à base (matriz ou filial) ou em sua casa, exceto se a empresa oferecer condições adequadas para o gozo do descanso;
– é permitido o fracionamento do descanso semanal em 30 horas mais 6 horas a serem cumpridas na mesma semana e em continuidade de um período de repouso diário;
– o motorista fora da base da empresa que ficar com o veículo parado por tempo superior à jornada normal de trabalho fica dispensado do serviço, exceto se for exigida permanência junto ao veículo, hipótese em que o tempo excedente à jornada será considerado de espera;
DOIS MOTORISTAS
– nos casos em que o empregador adotar revezamento de motoristas trabalhando em dupla no mesmo veículo, o tempo que exceder a jornada normal de trabalho em que o motorista estiver em repouso no veículo em movimento será considerado tempo de reserva e será remunerado em 30% da hora normal;
– é garantido ao motorista que trabalha em regime de revezamento repouso diário mínimo de seis horas consecutivas fora do veículo em alojamento externo ou, se na cabine leito, com o veículo estacionado.
– em caso de força maior, devidamente comprovado, a duração da jornada de trabalho do motorista profissional poderá ser elevada pelo tempo necessário para sair da situação extraordinária e chegar a um local seguro ou ao seu destino;
– não será considerado como jornada de trabalho nem ensejará o pagamento de qualquer remuneração o período em que o motorista ou o ajudante ficarem espontaneamente no veículo usufruindo do intervalo de repouso diário ou durante o gozo de seus intervalos intrajornadas;
VIAGEM EMBARCADO
– nos casos em que o motorista tenha que acompanhar o veículo transportado por qualquer meio onde ele siga embarcado, e que a embarcação disponha de alojamento para gozo do intervalo de repouso diário, esse tempo não será considerado como jornada de trabalho, a não ser o tempo restante, que será considerado de espera.
OUTROS REGIMES DE JORNADAS
Os Artigos 235-F e 235-H dizem que as convenções e os acordos coletivos de trabalho que vierem a ser firmados entre entidades empresariais ou empresas individualmente e sindicatos de empregados poderão alterar as condições de trabalho do motorista profissional, desde que respeitem a CLT e não prejudiquem a saúde, a segurança e a remuneração do trabalhador. Podem, inclusive, prever jornada especial de 12 horas de trabalho por 36 de descanso para o motorista, “em razão da especificidade do transporte, da sazonalidade ou de característica que o justifique”.
COMISSÃO PARA CHEGAR LOGO: PROIBIDO!
Mas o Artigo mais importante desta parte do motorista empregado na Lei 12.619 é o 235-G, que diz o seguinte: “É proibida a remuneração do motorista em função da distância percorrida, do tempo de viagem e/ou da natureza e quantidade de produtos transportados, inclusive mediante oferta de comissão ou qualquer outro tipo de vantagem, se essa remuneração ou comissionamento comprometer a segurança rodoviária ou da coletividade ou possibilitar violação das normas da presente legislação”.
Digamos que, nesse artigo, está o verdadeiro espírito da lei, aquilo que ela veio tentar combater e mudar, que é o exagero das jornadas de trabalho dos motoristas, os baixos salários e as ofertas de comissões para o cumprimento de jornadas de trabalho impossíveis, nas quais eles acabam com sua saúde e colocam em risco a segurança deles mesmos e da coletividade. Lembrou o advogado César Esmanhotto que a lei não proíbe os empregadores de oferecer comissões a seus motoristas, mas os critérios têm que ser outros. Aliás, ele disse que, com a nova lei, os empregadores continuarão com bons motivos para oferecer comissões a seus motoristas, desde que esses motivos estejam ligados à produtividade e à lealdade do motorista com a empresa, e não à pressa nas estradas.
PARA OS AUTÔNOMOS TAMBÉM
A partir do Artigo 5º, a Lei 12.619 estabelece mudanças no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que fica acrescido do Capítulo III-A. Aquilo que está no Código deve ser obedecido por qualquer motorista profissional, inclusive os autônomos, e não apenas pelos empregados. Algumas normas que veremos a seguir são uma repetição do que já está determinado na primeira parte da lei. Outras são novas. É um texto fácil de ser entendido. Veja o que dizem alguns itens (numa linguagem que não é o texto exato da lei):
– é proibido, ao motorista profissional, no seu trabalho, dirigir por mais de quatro horas seguidas;
– o motorista deverá descansar por no mínimo 30 minutos a cada quatro horas seguidas na direção. O tempo de direção e o de descanso poderão ser fracionados (divividos), desde que o tempo de direção não chegue a quatro horas seguidas;
– em situações justifiquem, o tempo de direção poderá ser prorrogado em até uma hora, “de modo a permitir que o motorista, o veículo e sua carga cheguem a lugar que ofereça segurança e atendimento”;
– dentro de um período de 24 horas, o motorista é obrigado a observar um intervalo de, no mínimo, 11 horas de descanso, que pode ser fracionado em nove horas mais duas no mesmo dia;
– o motorista pode cumprir o período de descanso no interior do seu próprio veículo, “desde que este seja dotado de locais apropriados para a natureza e a duração do descanso exigido”, pode-se dizer, desde que tenha cama;
– o motorista somente iniciará viagem com duração maior que um dia (24 horas) após o cumprimento integral do intervalo de descanso de 11 horas;
– entende-se como início da viagem (citado no item anterior) a partida do motorista após o carregamento do veículo;
– este último item procura obrigar os demais agentes envolvidos numa operação de transporte de cargas ou passageiros a ser solidários e corresponsáveis pelo cumprimento do descanso antes da viagem: “Nenhum transportador de cargas ou de passageiros, embarcador, consignatário de cargas, operador de terminais de carga, operador de transporte multimodal de cargas ou agente de cargas permitirá ou ordenará a qualquer motorista a seu serviço, ainda que subcontratado, que conduza (…) sem a observância…” do descanso de 11 horas, antes de iniciar uma viagem com duração superior a 24 horas.
PENALIDADES: MULTA E PARADA OBRIGATÓRIA
O Código de Trânsito Brasileiro agora também diz que o próprio motorista profissional é responsável por controlar o tempo de direção e os intervalos de descanso previstos na Lei 12.619, e estabelece as penalidades para quem desrespeitar essas normas: a infração será considerada grave, a pena é de multa e o veículo será retido para o cumprimento do tempo de descanso que for aplicável.
Um último artigo da Lei 12.619 diz, genericamente, que todos os tipos de locais de espera dos motoristas de transporte de carga, assim como pontos de parada, de apoio, alojamentos, refeitórios das empresas e de terceiros “terão que obedecer ao disposto nas Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, entre outras”. É uma forma de responder às constantes reclamações dos motoristas quanto à falta de respeito com que são tratados em muitas situações, principalmente de espera de operações de carga e descarga.
Embora a lei tenha entrado em vigor neste domingo (17), a fiscalização do tempo de direção terá início apenas dia 29 de julho, segundo o Contran. Para saber mais, clique aqui.