Essa medida simples, sozinha, já ajudaria muito a amenizar o aumento de custos do transporte causado pela Lei do Descanso. Mas ela depende do cliente, e não do transportador. Não tem como as duas partes não negociarem novos termos para as operações, diante da nova situação. Veja, nesta reportagem, o que está por vir

Nelson Bortolin

A Lei do Descanso (12.619) para os motoristas já veio tarde. Vai trazer segurança para as estradas e – espera-se – melhoria de vida para os profissionais e suas famílias. A lei obriga os motoristas – autônomos e empregados – a descansarem meia hora a cada quatro horas ao volante e a ficar fora da direção por 11 horas ininterruptas entre dois dias de trabalho. Mas, com essas restrições, o custo das operações de transporte de cargas pode aumentar até 30%, dependendo do segmento, segundo estudo do engenheiro especializado em trânsito Antonio Lauro Valdívia Neto. Por isso, os transportadores estão se armando com planilhas e argumentos para conversar com os embarcadores, de forma que a sua atividade continue sendo viável.

Flávio Benatti, da NTC&Logística: encargos devem ser assumidos pelo embarcador

Para lideranças do setor empresarial do transporte, já passou da hora de trazer o embarcador ou o dono da carga para o centro da mesa de negociações. Segundo Flávio Benatti, presidente da NTC&Logística, em muitos casos, para baratear o transporte basta fazer o planejamento adequado das operações de carga e descarga: “O que não podemos mais é ficar esperando a gôndola do supermercado esvaziar para só então descarregarem o caminhão”.

O coordenador jurídico do Sindicato das Empresas de Transportes de Minas Gerais, Paulo Teodoro Nascimento, vai mais longe. Para ele, a lei 12.619/12 traz o necessário equilíbrio às relações entre transportador e embarcador. “Nosso cliente terá de rever suas planilhas de remuneração do serviço do transporte”, escreveu ele na última edição do informativo do Setcemg, acrescentando: “A lei trouxe para a superfície esta caixa preta de planilhas de custos dos embarcadores que desdenhavam os fatos e teimavam em não reconhecer o ônus que sempre explodiu no colo do transportador, jogando sua remuneração no buraco e ajudando a disseminar a concorrência predatória. A lei igualou aos desiguais”.

Tanto igualou que alguns transportadores encaram a nova situação como uma oportunidade de faturar mais. O gerente da transportadora londrinense Real 2000, Milton Hilário, por exemplo, diz isto: “A indústria continua produzindo e entregando. Existe demanda por transporte. Nesta semana (segunda semana de agosto), estivemos procurando 10 carretas de terceiros em São Paulo e não encontramos. Nosso pensamento é ampliar a frota para atender a demanda.” Segundo Hilário, a outra alternativa é contratar agregados. “Os agregados também vão fazer bons negócios. Como eles podem rodar mais que o motorista empregado, haverá disputa pelo trabalho deles”, afirma.

Pode-se dizer, segundo o presidente da NTC&Logística, que a lei, ao obrigar todas as transportadoras, indistintamente, a respeitarem o direito dos motoristas ao descanso, veio também disciplinar a concorrência. “A lei veio trazer igualdade de condições para todas as empresas”, disse Flávio Benatti. E não se deve imaginar que ela “não vai pegar”, porque o Ministério Público do Trabalho, defensor de uma jornada de trabalho humana para os motoristas, “será o seu guardião”. Segundo Benatti, passado o primeiro momento, de conversações e ajustes nos contratos e na forma de trabalhar entre as transportadoras e seus clientes, a situação entrará nos eixos: “Na Espanha aconteceu o mesmo. Quando foi aprovada uma lei parecida com esta, houve muita grita, muita preocupação, mas hoje ela funciona bem e todo o mundo a cumpre”.

Alguns custos, na ponta do lápis

Valdívia Neto: quanto maior a distância, menor o impacto

O engenheiro especializado em trânsito Antonio Lauro Valdívia Neto fez uma série de cálculos sobre o impacto da lei 12.619 para as transportadoras. Ele mostra, por exemplo, que uma empresa que antes usava nove veículos de 25 toneladas e nove motoristas empregados para transportar 2.500 toneladas de carga por mês, pode agora precisar de 13 veículos e 13 motoristas para fazer o mesmo serviço, pois os motoristas, que antes faziam, digamos, jornadas de 14 horas por dia, agora estão limitados a 10 horas.

No dia 18 de agosto, a Carga Pesada acompanhou o curso que Valdívia ministra mensalmente na Escola de Transporte, em São Paulo, para transportadores e embarcadores.

Ele fez outras contas. Por exemplo: trabalhando 14 horas diárias durante 22 dias por mês, um caminhão totaliza 308 horas no mês. Nesse tempo, dá para fazer 11,5 viagens de 1.000 km por mês a uma velocidade de 50 km/h. “Mas rodando apenas dez horas por dia, no final, serão só oito viagens por mês.

Num cálculo que envolve todos os custos fixos e variáveis, incluindo o trabalho do motorista, 10 horas por dia, Valdívia estima que o custo da viagem deste caminhão, antes da lei, era de R$ 2.702, e passa a R$ 3.349, ou seja, 24% a mais.

Fonte: Aprosoja

“O impacto sobre o custo é proporcionalmente menor conforme a distância percorrida aumenta”, disse o engenheiro. “Se, no nosso exemplo, as viagens fossem de 100 km, o aumento do custo seria de 32%.”

Valdívia também simulou uma situação envolvendo dois motoristas no caminhão. Com o revezamento, é possível rodar ou trabalhar 16 horas por dia. O resultado é que o aumento do custo da viagem de 1.000 km será menor, de 13,4%.

Qual será o tamanho da dificuldade das empresas para repassar esses custos? Esta é uma pergunta difícil de responder. Ainda mais porque, quando a Carga Pesada terminava esta edição, ainda faltavam 10 dias para o governo começar a fiscalizar o cumprimento da lei – e o transportador sentir na pele a necessidade de se adequar à nova situação.

Pedro Parpinelli, autônomo de Primavera do Leste (MT), se distrai enquanto espera para descarregar grãos em Londrina

No setor de grãos, os fretes já haviam subido de 11% a 15% em agosto deste ano na comparação com o mesmo mês de 2011, segundo informou a Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja). Não é comum um valor tão alto (veja quadro). Mas não se pode dizer que seja só efeito da lei 12.619, pois está sendo colhida uma supersafra de milho. “Ainda estamos analisando os números e não podemos dizer com precisão a que se deve o aumento”, diz Carlos Fávaro, presidente da Aprosoja.

Fávaro considera “justo” que os motoristas profissionais sejam beneficiados pela Lei do Descanso. Mas diz que o sistema logístico do País é arcaico e, com a lei, ficará mais “engessado”. “O Brasil vai pagar um preço muito alto por não estar investindo nos outros modais e no próprio rodoviário”, afirma.

Já o diretor executivo da Associação dos Transportadores de Carga do Mato Grosso (ATC), Miguel Mendes, acha que, na próxima safra de soja, que também promete ser grande, o frete vai subir bem mais, de 30% a 50%, mas isso não será por causa da Lei do Descanso, “e sim por causa de outra lei, a da oferta e da procura”.

A do descanso, diz ele, está sendo cumprida pelos sócios da ATC desde que entrou em vigor, dia 17 de junho. “O veículo está demorando mais para completar a viagem e está faltando caminhão”, emenda. Desta forma, é natural que o frete suba. Mas o preço do produto agrícola também subiu. “Não podemos esquecer que em 2004, em 2005, a saca de soja estava a R$ 24. Hoje está a mais de R$ 80. Então o produtor tem gordura para queimar”, analisa.

“Chegou a hora do autônomo”

A frase é do presidente da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), Diumar Bueno. Para ele, a Lei do Descanso e o fim da carta-frete trazem um cenário favorável à categoria. “Vamos virar uma página, melhorar a imagem do caminhoneiro para que seus filhos possam voltar a sentir vontade de assumir a profissão do pai”, afirma.

A lei 12.619 impõe ao motorista empregado uma jornada semanal máxima de 56 horas de trabalho, enquanto os autônomos podem dirigir 12 horas por dia e, como não precisam respeitar um dia de descanso, podem fazer 84 horas semanais ao volante.

Para Bueno, vai haver uma melhora generalizada no valor do frete e os autônomos ainda ficarão com “os melhores percursos”, uma vez que os motoristas empregados têm uma limitação maior de tempo de direção.

Mas nem todo representante de transportadora pensa assim. Miguel Mendes, da ATC, diz que não será tão simples: “As empresas têm toda uma infraestrutura focada no seu patrimônio. Elas não vão se desfazer do patrimônio para terceirizar. O que o empresário vai fazer com uma frota de 300 caminhões?” No setor de grãos, Mendes acredita que as grandes tradings não vão entregar seus produtos aos autônomos.

Já o presidente da NTC&Logística, Flávio Benatti, contemporiza quando questionado sobre a tendência de valorização do autônomo. “Depende da operação. Quem tem de cumprir tempo de trabalho não é o caminhão e sim o motorista. Haverá muitas situações em que a gente poderá colocar três motoristas na mesma operação.”

Renovação de frota para ajudar o autônomo

A lei 12.619 abre novas possibilidades de trabalho para os autônomos, mas nem todos vão poder aproveitar, na opinião de Ricardo Alouche, diretor de Vendas, Marketing e Pós-Venda da MAN Latin America. A idade dos caminhões e a falta de crédito para a compra de novos continuam a dificultar a vida da categoria, segundo ele. “Na hora de oferecer o serviço para o autônomo, as grandes transportadoras vão querer saber se ele tem o caminhão adequado. Vão falar: ‘Eu contrato se você tiver um veículo com até três anos de idade’”, afirma o diretor.

Alouche diz que o Pagamento Eletrônico de Frete (PEF), que substituiu a carta-frete, ajuda o caminhoneiro autônomo a comprovar renda e, consequentemente, aumenta as chances de ele obter financiamento. “Mas aí entra outro fator: o motorista que tem um caminhão velho não vai conseguir mudar direto para o zero-quilômetro. O ideal é que passasse para um menos velho, tipo oito anos, só que esse os bancos não financiam.”

Por causa disso, na opinião de Alouche, agora é o momento de o Brasil implantar um programa de renovação de frota. “Toda vez que se fala em renovação de frota, a gente pensa no que foi realizado no México e na Espanha, onde houve sucateamento dos velhos veículos em troca de novos. O que nós estamos tentando é mostrar que, se não podemos ter este ideal, devemos criar um programa que, pelo menos, possibilite a renovação gradativa da frota circulante”, ressalta. Em outras palavras, o programa seria uma forma de garantir o financiamento de caminhões seminovos.

Para Alcides Cavalcanti, diretor comercial da Iveco, a Lei do Descanso representa uma revolução silenciosa que está acontecendo no setor de transportes. “Já estamos observando uma preocupação em otimizar o aproveitamento dos motoristas, aumentando a produtividade das composições”, afirma.

Segundo ele, quem tem uma carreta de três eixos vai partir para a vanderleia. Quem tem vanderleia vai para um bitrenzão, e assim por diante. “Vai ser preciso aproveitar melhor o motorista, que já estava em falta mesmo antes da lei. Além disso, o autônomo vai ser mais valorizado e vai gerar mais vendas de caminhões, ou para a empresa ou para o próprio autônomo”, acredita. Para o diretor, serão necessários alguns meses para uma acomodação do setor às novas exigências.

Uma greve que dividiu a categoria

De 25 a 31 de agosto, o Brasil assistiu a uma greve de transportadores que chegou a parar a Via Dutra (foto à esq.). O movimento foi marcado por divergências entre as entidades que representam autônomos e empregados. A greve foi comandada pelo Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC) e, em muitos locais, como no interior do Paraná, por donos de pequenas transportadoras.

Do outro lado, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), a União Nacional dos Caminhoneiros do Brasil (Unicam) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Terrestre (CNTTT) se colocaram contra o movimento.

Em resumo, o MUBC pedia o adiamento por um ano da Lei do Descanso e a revogação da resolução 3.658 da Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT), que institui o Pagamento Eletrônico de Frete (PEF) no lugar da carta-frete. Também queria alterações no Registro Nacional do Transportador Rodoviário de Cargas, o RNTRC, para impedir que empresas que não tenham o serviço de transporte prestado a terceiros como atividade principal obtenham o registro.

O movimento terminou quando o governo aceitou discutir essas questões. Uma mesa de negociações tem se reunido toda semana para estudar as reivindicações.

Quando a Carga Pesada finalizava esta edição, a ANTT havia apresentado algumas propostas. Entre elas, a entrega do RNTRC somente às empresas que tenham como atividade principal o transporte rodoviário de cargas na sua Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE).

A ANTT propunha estender o Código Identificador de Operação de Transporte (Ciot), previsto na resolução 3.658, para todas as operações “por conta de terceiros mediante remuneração”. Ou seja, incluía as empresas de transportes. Essa alteração é considerada importante porque as transportadoras estão desobrigadas até o momento de obter o Ciot. Por causa disso, muitos contratantes estão exigindo dos autônomos que abram empresas, movimento que as entidades chamam de “pejotização” do autônomo. A manobra é para fugir do Ciot, que formaliza a atividade e evita a sonegação de impostos.

Embora não constasse da proposta oficial divulgada pela ANTT, a CNTA dizia que o pagamento do autônomo por meio de cheque também estava sendo avaliado pelo governo.