Quem viveu na roça até os 1990s conheceu o caminhão do leite. Todos os dias vinha pegar os latões cheios e deixar os vazios. Combinadas com essa rotina, variadas histórias de abnegação por parte de seus motoristas. Pedaço ‘dessa coisa boa’ virou livro. Pra ser lido com os “olhos da alma”
LUCIANO ALVES PEREIRA
Nossa máquina de transporte chamada caminhão completa em setembro 123 anos, segundo os alemães. Para estes, o conceito de veículo automotor de carga (Last Kraft Wagen) oficializou-se em 1896 e aos poucos foi substituindo o carroção de tração animal. Rodo-historiadores relatam que “o mercado não aceitou a novidade como seria de esperar”. Superadas as dificuldades construtivas – lá pelos anos 1930 –, usuários passaram a falar do engenho pelas especificações de potência do motor, capacidade de carga, eficiência dos freios e, mais recentemente, de conforto e estilo.
Eu mesmo, que me dedico ao assunto desde 1971 e deveria ser mais amplo, permaneci nesse meio de campo. Limitei-me a lançar luzes só em parte da face do caminhão, passando ao largo de várias de suas vertentes. Por exemplo, esmiuçar-lhe o lado social. A função social do Transporte Rodoviário de Carga. É claro, com igual destaque à figura inseparável do operador do veículo que é o caminhoneiro.
QUANTA GENTE – Para alívio meu, no entanto, houve quem corrigisse a falha em junho. Com perspicácia, enriquecida por vivências próprias e obstinação em mergulhar no passado quase apagado, um grupo de oliveirenses elaborou trabalho de fôlego, materializado em livro, resgatando a figura dos caminhoneiros leiteiros de Oliveira (MG).
Rosemary Maria do Amaral, (foto) Carlos Alberto da Silva e Demóstenes Romano Filho reuniram esforços e soltaram o “Memórias de Caminhoneiros Leiteiros – Mercadores do Progresso”. Contaram ainda com José Juarez Viana, Sidnei Augusto Gonçalves Vieira e a própria professora Rosemary como organizadores do projeto.
Aí vem a pergunta: por que tanta gente? Deduz-se que pelo ineditismo da obra. Os autores tiveram de reunir esparsos relatos orais de quem operou linha de leite e tentar encontrar raríssimas fotos. Tudo ocorrido entre os anos 1950 e 1990. Naquela época, o interior de Minas não dispunha de energia elétrica, muito menos de telefonia. Estradas nem se fala – meras passagens de carros de bois. Mas a carga (leite fresco) era do tipo encomenda urgente, perecível, já que não era refrigerada.
O livro de 200 páginas levanta memórias de 13 caminhoneiros, por meio de entrevistas sobre sua lida diária na apanha do leite em fazendas da bacia do entorno de cidade do Centro-Oeste mineiro, a 140 quilômetros de BH. Ou seja, operaram linhas de leite que Rosemary diz tratar-se de “uma expressão fora da realidade de muitas pessoas, mas, ao mesmo tempo, bastante conhecida de muitas outras, principalmente aquelas que têm alguma relação com fazendas”.
MILK RUN – Os desafios eram tantos que a operação ganhou capítulo especial no estudo e desenvolvimento da Logística. Seguindo a moda, adotou o rótulo inglês de milk run. É a verdadeira corrida do leite, quando uma operação de coleta de pequenos pesos ou volumes tem de passar obrigatoriamente por diversos ‘entregadores’ e para tanto requer capilaridade. O conceito é popular na indústria para ‘arrecadação’ de componentes e posterior montagem de conjuntos ou produtos.
Rosemary não pensou em tecnismos. “Qual a relação entre a ‘linha de leite’, ‘o caminhoneiro leiteiro’ e a ‘história’ ou ‘historiadora’ com seus atores?”, pergunta. “É o destino”, explica. “Sim, o destino é a relação entre as expressões que se despontam ao longo da história contada neste diamante que lhe é entregue para ser descoberto, desbravado e até mesmo desnudo por meio da leitura, principalmente a leitura feita pelos ‘olhos da alma’, pois aqui estão preciosidades coletadas ao longo de anos de pesquisas, estudos e trabalho sério para dar vida a atores de uma profissão quase esquecida, que se tornou e foi durante muito tempo uma ação social.”
Lírica, não? Antônio Martinez Viana, um dos depoentes do livro e ‘ator’ do milk run, foi mais seco no comentário, sem fugir do exposto por Rosemary. Ele é filho de família que toca a Fazenda de Lagoa ou Grota do Jacarandá, na região do Felix dos Santos. A seu ver, o papel do caminhoneiro era muito mais do que transportar leite. “Ele representava um elo entre dois mundos, o rural e o urbano, em um tempo em que o mundo todo era muito diferente. Na maioria das roças não havia luz elétrica, TV, geladeira ou telefone. Toda comunicação e intercâmbio de coisas eram feitos por meio do leiteiro.” Vai além: “Hoje – acrescenta Martinez – percebo que o ganho financeiro dessa atividade de leva e traz não era grande e que tais tarefas eram praticadas mais por abnegação, camaradagem ou mesmo assumidas por eles como uma missão”.
TANQUES – Não é o que confirma Sebastião Fátimo Amaral (Fatinho, pai da professora Rosemary). “A gente ganhava por quilômetro”, conta ele. “Eu vendi a minha linha do Morro Alto para Sô Totó por mil e poucos cruzeiros, dinheiro da época, e comprei a do Bosco por cinco mil. Era muito trabalhoso, mas era bom negócio.” Depois que passou para o tanque com leite refrigerado, Fatinho acha que “avacalhou tudo, destrambelhou”. Pelas suas contas, enquanto foi lata (latões) era bom para o produtor e para o carreteiro, porque o primeiro não tinha que gelar o leite, gastar energia e o caminhão está ali todo dia para levar uma encomenda, fazia qualquer coisa. Depois que passou para o tanque, não levava ração mais porque no tanque, sem carroceria, como vai levar ração, encomenda de armazém? A mudança do processo, na opinião de Fatinho, “foi lucro para os donos dos laticínios e para os depósitos de leite também”.
Fatinho nasceu em 1951 e já está aposentado. Numa aplicação própria para caminhões de porte leve, o Ford F-4000 teve muita aceitação no segmento dos operadores de linhas de leite. Ele conserva o seu, ano 1984, com carroceira de 4 metros e virou fretista de ‘por aqui por perto’. Em uma de suas linhas rodava 140 quilômetro por dia. Das 6 horas ao meio-dia. Todo leite era para a Figuinha (laticínio local), até que esta foi vendida para a Parmalat. “Aí todos os carreteiros foram transferidos para a nova empresa, com produtores e tudo.”
Fui ouvir o relato de Fatinho em sua casa. Ele me explicou a diferença entre café medroso e corajoso. Conversamos, conversamos e nada à mesa. Nem um nem outro. O corajoso deveria aparecer. “Anda sozinho, não precisa ser acompanhado.” Nada. Será que visita de repórter o intimidou?