Projeto de lei do Estatuto do Motorista Profissional pretende regulamentar, entre outras coisas, a jornada de trabalho dos caminhoneiros. Proposta que está em debate é de um limite de seis horas para o motorista empregado. Opiniões a respeito deste ponto – e de outros, como o intervalo obrigatório de 10 horas entre uma jornada e outra – são muito divergentes
Nelson Bortolin
O senador gaúcho Paulo Paim (PT-RS) quer aprovar, até o ano que vem, o projeto de lei 271, que institui o Estatuto do Motorista Profissional. Estatuto é o nome que se dá a um conjunto de normas que devem ser aplicadas, por exemplo, a uma categoria profissional – neste caso, a categoria dos motoristas, que abrange, no projeto de Paim, não apenas os caminhoneiros autônomos e empregados, mas também os motoristas de táxi e de ônibus.
Um dos pontos que mais chamam a atenção no projeto é o que limita a jornada de trabalho diária do caminhoneiro empregado a apenas seis horas. O próprio senador admite que se trata apenas de uma “primeira versão para provocar o debate”. Outro ponto importante é a fixação em 10 horas do intervalo mínimo entre uma jornada de trabalho e outra, tanto para empregados como para autônomos.
Paulo Paim diz que seu desejo é que o texto final, a ser votado no Congresso, seja uma síntese das vontades de todos os que terão sua vida regulada pelo projeto. Para isso, ele tem ouvido muito. No dia 28 de abril, foi feita uma audiência pública sobre o tema em Brasília. Em maio, a NTC&Logística deu início a uma série de encontros para tirar suas próprias propostas. No dia 30 de junho, foi realizado um fórum de debates só para tratar do projeto do estatuto na 12ª Transpo-Sul – Feira e Congresso de Transporte e Logística do Rio Grande do Sul, com a presença do senador.
Raros são os motoristas que ficam menos de 10 horas por dia ao volante. Trabalhar de 12 a 16 horas é muito comum. Não raro, alguns passam a noite acordados para entregar uma carga expressa.
Se, por um lado, todos concordam que é preciso regulamentar a jornada de trabalho, por outro se observa que será difícil chegar a um número de horas que agrade a todos os participantes da discussão. Empregados, empregadores e autônomos têm visões muito diferentes. Nem as lideranças dos autônomos se entendem entre si.
Empregados querem 40 horas semanais
Um dos principais defensores do Estatuto é Luís Antonio Festino, integrante da Confederação Nacional dos Trabalhadores de Transporte Terrestre (CNTTT) e dirigente da Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST). Ele representa os empregados nas conversas com o senador Paulo Paim.
Segundo Festino, não há razão para o motorista profissional ter uma carga horária diferente dos demais trabalhadores. Para viabilizar a redução da carga horária, ele propõe que as transportadoras criem pontos de apoio que possibilitem o revezamento de motoristas. E defende o pagamento de um adicional pelo tempo que o caminhoneiro passar nesses pontos de apoio. “Sempre que o caminhoneiro estiver fora de casa, à disposição da empresa, ele tem de receber”, afirma Festino. Mas essa proposta não está prevista no estatuto.
Autônomo propõe 750 quilômetros/dia
Em vez de tempo de direção, representantes dos autônomos que participam da elaboração do projeto querem limitar o percurso: no máximo 750 km por dia. É a proposta do gaúcho Carlos Alberto Dahmer, o Lit, do Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC), presidente do Sindicato dos Transportadores Autônomos de Carga de Ijuí e Região (Sinditac).
Não é bem assim. O presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, é contra até mesmo a simples inclusão de autônomos no Estatuto do Motorista. “Nós não somos trabalhadores, somos empreendedores. E não queremos fazer parte do estatuto”, enfatiza. Sobre a proposta do MUBC, Fonseca é categórico: “Eu acho que é uma burrice determinar quantos quilômetros o autônomo pode fazer por dia. Já disse isso várias vezes para eles”.
Mas Fonseca concorda que deve ser estabelecido um limite diário de tempo de volante para o autônomo. “O que não devemos é tratar essa questão como jornada de trabalho, e sim como tempo de direção. Uma boa saída seria estabelecer esse limite no Código de Trânsito”, diz. Já existe uma proposta neste sentido na Câmara dos Deputados. O projeto de lei 2.872/08 altera o Código, exigindo que os motoristas profissionais descansem 10 horas de um dia para o outro, com fiscalização por tacógrafo.
Para Fonseca, o ideal seria uma reformulação da logística de transporte brasileira, de modo que os caminhões não tivessem que rodar por longas distâncias. “A soma da ida e da volta não deveria passar de 1.200 a 1.300 km, de modo que dia sim, dia não, o autônomo pudesse estar na casa dele.”
Deve ser por segmento, diz empresário
O presidente da NTC&Logística, empresário Flávio Benatti, quer tempo para apresentar uma proposta de consenso entre patrões e empregados a respeito da jornada de trabalho dos motoristas. “Cada segmento tem uma realidade. O transporte de longa distância é diferente do de pequena distância. O trabalho dentro das cidades é totalmente diferente daquele realizado nas estradas. Isso deve ser levado em conta, como já ocorre com a legislação dos Estados Unidos, por exemplo”, diz Benatti.
Benatti ressalta que, ao limitar a jornada de trabalho, será preciso criar infraestrutura nas estradas para que os caminhoneiros possam parar. “Já temos cobrado da ANTT a necessidade de prever nos futuros contratos de concessão a construção de espaços para os caminhoneiros pararem. Se formos criar uma legislação que trate de render motorista ou parar para descanso, tem que se oferecer uma estrutura para fazer cumprir essa legislação.”
O presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de Minas Gerais (Setcemg), Ulisses Martins Cruz, também é a favor do controle do tempo de direção. “Estamos plenamente de acordo com o intervalo de 10 horas entre duas jornadas de trabalho, como está no projeto. Pode até ser de 11 horas. Mas o Brasil não tem condições de limitar a jornada diária de trabalho para motoristas de caminhão em seis horas. Faltariam motoristas, seria um ônus absurdo para a sociedade”, afirma.
Miguel Mendes, diretor-executivo da Associação dos Transportadores de Cargas (ATC) de Rondonópolis (MT), entende que o Brasil não dispõe da infraestrutura necessária para que a jornada de trabalho dos motoristas possa ser reduzida. “Nos países que diminuíram a jornada, há um equilíbrio maior entre os modais. Não é como no Brasil, em que o modal rodoviário responde por 60% do transporte de cargas. Teríamos que dar um salto bem grande antes de adotar uma medida como essa.”
Ele ressalta que, no Brasil, apenas 35% dos caminhoneiros são empregados, e que uma jornada de trabalho reduzida vai fazer o mercado exigir ainda mais trabalho dos autônomos.
TRANSPORTADORAS – As transportadoras estão tratando o assunto com muita cautela. O diretor de uma das maiores empresas do País concordou em falar à Carga Pesada, desde que seu nome não seja publicado.
Ele acha que, se a jornada de trabalho do motorista for limitada a seis horas diárias, muitas empresas vão quebrar. “Acredito que seja possível reduzir a quantidade de horas trabalhadas pelos motoristas, mas essa medida não pode ser imposta de uma hora para outra”, afirmou.
Os empregados da transportadora do nosso entrevistado têm liberdade para dirigir das 6 às 22 horas. “Se a carga é expressa, podem ficar ao volante até a uma da manhã, desde que autorizados pelo gestor da frota.” Os próprios motoristas esticam a jornada, diz ele, para engordar o salário. “Eles ganham o estabelecido no dissídio coletivo e buscam metas de premiação de acordo com o tempo gasto na entrega e com o consumo de combustível.”
O entrevistado acha razoável, para os motoristas empregados, uma jornada diária dividida em três turnos de quatro horas, como reivindica uma parte dos autônomos. “É óbvio que precisam parar entre esses turnos para descansar e se alimentar.”
Para reduzir mortes, oito horas por dia
O Transporte Rodoviário de Cargas foi responsável por 10% das 2.804 mortes em acidentes de trabalho ocorridas no País em 2007. O levantamento do Ministério da Previdência Social levou o Governo Federal a criar um grupo de trabalho para propor medidas de combate ao problema.
O grupo é formado por representantes dos Ministérios da Saúde, do Trabalho e da Previdência Social, ANTT, Denatran e Polícia Rodoviária Federal, além das entidades do setor.
“Em todas as discussões que fizemos, vimos que a jornada excessiva de trabalho dos motoristas é uma questão central a ser enfrentada”, afirma Carlos Augusto Vaz de Souza, coordenador de Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde.
Segundo ele, nem sempre as posições de empregadores e trabalhadores do grupo são as mesmas. “Mas acho que poderemos chegar a um acordo razoável.” E qual seria uma jornada de trabalho razoável para motoristas? Souza responde na bucha: “Nada além de oito horas diárias”.
Alheios ao debate, motoristas dão duro
Em conversas com caminhoneiros, a reportagem da Carga Pesada constatou o quanto as propostas de regulamentação da jornada de trabalho estão distantes da realidade vivida hoje pela maioria.
Veja o que diz Nilson Shimanko, 40 anos, de Fraiburgo (SC): Como tudo o que ganha se baseia em comissão (em média R$ 1.500 por mês), quando sai para a estrada ele quer mais é “rendimento”. Admite que só dorme três ou quatro horas por noite, diz que já passou duas noites sem dormir, mas nega que use rebite.
Uma das rotas mais puxadas que ele costuma fazer é Fraiburgo/Vitória (ES), levando maçã. “Nessas viagens, rodo o dia inteiro, vou dar uma cochilada lá pelas três às cinco da madrugada e volto para a estrada”, diz, sem se queixar. “Eu gosto mesmo é de dormir em casa. Quando volto, fico lá duas ou três noites antes de outra viagem.”
Shimanko acha que sua vida será pior se tiver que passar menos tempo ao volante. “Vou demorar mais a voltar para casa.” Ele também duvida que as empresas venham a fazer revezamento de motoristas, para encurtar o tempo de viagem.
Há cinco meses longe de casa, o autônomo Rivanildes Rosa Santo, 40 anos, de Bom Jesus do Tocantins (PA), se preocupa em descansar 10 horas de um dia para o outro. “Eu não rodo depois das sete da noite e só volto a trabalhar às cinco horas da manhã”, afirma o paraense que viaja sempre acompanhado da mulher, Sôndida Lima Santos.
Com seu Mercedes-Benz 1516, ano 1981, ele viaja o País inteiro “carregando tudo que tiver para carregar”. Embora jamais dirija à noite, ele não gosta da ideia de ter de parar a cada quatro horas. “Vixe, assim a gente não chega a lugar nenhum. Teria que melhorar muito o frete para eu rodar nessa moleza.” Ele afirma faturar de R$ 2 mil a R$ 3 mil mensais livres.
Para quem carrega grãos, a redução da jornada ou do tempo de direção é uma equação ainda mais difícil de resolver, por causa da demora nas filas para descarregar. Maximiano da Cruz Ângelo, de Presidente Wenceslau (SP), estava numa fila havia 24 horas, em Cambé (PR), quando conversou com a reportagem.
Ele costuma dirigir das cinco da manhã às 10 da noite. Descontando o almoço, o jantar e a cochilada da tarde, dá umas 14 horas por dia ao volante. Ângelo ganha apenas por comissão – cerca de R$ 3 mil na safra e R$ 2 mil no resto do ano. Se tivesse de trabalhar só oito horas, acredita que “ficaria numa situação difícil”.
Para ele, a vida está “razoável”, uma vez que a empresa para a qual trabalha é “muito certa”. “Paga tudo direitinho: fundo de garantia, 13º, férias.” Descanso remunerado ele tem apenas uma vez por mês, de quatro dias a uma semana, dependendo da época do ano. “Fora disso, é trabalho de segunda a segunda.”
O que diz o projeto 271/08, do senador Paulo Paim
- O motorista empregado deve cumprir jornada de trabalho de seis horas diárias, no máximo, observado um período de descanso de 20 minutos (se trabalhar na cidade) e uma hora, de forma contínua ou descontínua (se trabalhar na estrada);
- O motorista empregado deve receber as horas excedentes das do horário normal com acréscimo de, no mínimo, 100% sobre o salário-hora normal;
- O motorista empregado ou autônomo fica proibido de dirigir na estrada ininterruptamente por mais de quatro horas, tendo de descansar pelo menos 30 minutos de forma contínua ou descontinuada nesse período;
- O motorista empregado ou autônomo é obrigado, dentro do período de 24 horas, a observar um intervalo de descanso ininterrupto de, no mínimo, 10 horas;
- O motorista empregado ou autônomo terá direito a aposentadoria especial após 25 anos de serviço, sem exigência de idade mínima.