Caminhão autônomo, já em testes fora do Brasil, levanta uma interessante questão: chegará o dia em que não vamos mais educar para o trânsito e transmitir noções de responsabilidade para os condutores?

Luciano Alves Pereira

Como quem quis lembrar alguns dos majestosos filmes de Hollywood da década de 50, como os de Cecil B. De Mille – entre os quais existe um com o sugestivo nome “O Maior Espetáculo da Terra” –, a Freightliner americana apresentou seu caminhão Inspiration. Foi em maio do ano passado, em Las Vegas. O fabricante de cargueiros, que faz parte do conglomerado Daimler AG alemão, escolheu a represa de Hoover para marcar o nascimento do seu caminhão autônomo. A base é o modelo Freightliner Cascadia Evolution. Já a barragem ficou na história como a maior obra do seu tempo, o período da Grande Depressão (1929) e virou símbolo de superação (veja o vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=CzrTelS3XAc).

No Brasil, a notícia de um veículo que dispensa o comando permanente do motorista chegou como coisa extravagante. Quem iria imaginar que as autoridades de trânsito sequer pensariam em admitir o ir e vir de um caminhão sem que o chofer estivesse com as duas mãos agarradas ao volante?

Ocorre que, em janeiro, o governo Obama resolveu apoiar a coisa, com uma manifestação pública do secretário (equivale a ministro) dos Transportes, Antony Foxx. O ministro disse que “enfrentar o desafio de uma evolução do transporte mais limpo e moderno requer infraestrutura que consiga reduzir os congestionamentos sem exigir a construção de mais e mais pistas”. E acrescentou: “É imperativo que façamos melhor uso das vias de que dispomos e os veículos autônomos nos oferecem um jeito realístico de fazer isso”.

O governo americano investirá US$ 10 bilhões em dez anos para “testar veículos automatizados e conectados”. No final da fala é que Foxx abordou o principal: “Nós sentimos que a tecnologia da automação será capaz de avançar em conveniência, mobilidade e segurança, uma vez que os acidentes decorrem de erro dos motoristas”. Foi a desistência confessada. O conforto e a segurança das estradas empacaram. Então, o negócio é mexer nos veículos. Martin Zeilinger, engenheiro da Daimler Trucks AG, lembrou que vários dispositivos de segurança já estão incorporados aos caminhões que rodam por aí. Citou o ABS, o piloto automático e o ESC (controle eletrônico da estabilidade). Em nível acima, dois outros controles assistem ao condutor: o cruzeiro adaptativo e o gerenciamento integrado do trem de força, “enquanto o volanteiro retém a direção sob seu comando mas não o pleno acelerador nem os freios”.

O poder decisório do motorista vai sendo cortado até que, no quarto nível, o profissional se limita a contemplar o desfile dos dados da navegação. Essa bandeja de dispositivos cheios de chips “é intrusiva e invasiva”, diz o jornalista Eduardo Rocha, da Auto Press. E acrescenta: “Caso o motorista se coloque em risco de colisão, os sistemas entram em ação, sem se preocupar com melindres de quem esteja ao volante”. Como comentou, “o condutor passa a ter cuidado para que o carro não reprove o seu comportamento – com uma freada de advertência ou uma mudança no esterçamento do volante”. Em resumo: “Cria-se uma situação em que o motorista deve aceitar a condição de refém da tecnologia de segurança do fabricante…”

A possibilidade da dita tecnologia se confirmar e chegar ao nosso dia a dia assusta o mundo do transporte, o qual constata não haver mais futuro em insistir na educação nem no esforço legal, dois esteios na prevenção de acidentes de trânsito. Assim, o profissional terá de ser destituído do comando a bordo, mantendo-se presente apenas como um copiloto.

Sobre cassar o direito de decidir como comandar o veículo, dois veteranos motoristas da Trans-Herculano (produtos perigosos), de Juiz de Fora (MG), se encontravam, em janeiro, sentados na privilegiada varanda do restaurante do Roberto Rezende (km 557 da Fernão Dias) e viam o jeito dos profissionais descerem a serra de Itaguara. Chovia muito e parte importante do fluxo deixava despencar acima de 80 km/h, naquele declive comprido de curvas fechadas. O cálculo era no visual e a avaliação por dedução. Os que desciam não ligavam para os riscos, por imposição de uma eventual ‘opacidade mental’, como foi o apelido que rolou. Tal quadro já virou consenso entre os macroplanejadores do transporte rodoviário e os está levando a agir pelo rebaixamento da capacidade de decisão da turma de raladores de boleia. A tecnologia da automação é a ferramenta. Coisa para o futuro, que já corre solta no fechadíssimo clube dos fabricantes de veículos.

Que tempos são estes?

A propósito do tema acima, que já havia sido tratado pelo repórter Luciano Alves Pereira no site da Carga Pesada, o engenheiro mecânico Luiz Roberto Imparato enviou o seguinte comentário ao nosso repórter:

Querido amigo, infelizmente perdemos a batalha de educar e treinar os motoristas para os veículos do futuro. A droga, a impunidade e a falta de escrúpulos de alguns empresários em não remunerar adequadamente seus motoristas contribuíram muito para essa derrota.

Mas um ponto importante em prol dessa tecnologia é que o custo fixo de um veículo cai assustadoramente se ele for utilizado 24 horas. Os tempos românticos de se dormir na boleia ficam cada vez mais distantes na louca concorrência entre as empresas. O motorista tem que dormir e descansar, mas o caminhão não.

A indústria automobilística, desde o seu aparecimento, matou mais do que as duas grandes guerras e está cada vez mais evidente que o personagem atrás do volante é um dos grandes responsáveis por isso, independente do grau de tecnologia dos produtos que as montadoras fazem. Veículos autônomos nada mais são do que a forma que elas encontraram para se proteger de um movimento que vem crescendo, buscando responsabilizá-las como os fabricantes de cigarros foram e estão sendo pela morte de milhões de pessoas. Esses são os novos tempos!