A inauguração da atual BR-040, entre Juiz de Fora e Belo Horizonte, em 1957, é considerada o ponto de partida para a prioridade dada ao desenvolvimento do modal rodoviário sobre outros modais no Brasil. O repórter Luciano Alves Pereira relembra aquele período e dá seu próprio testemunho sobre as dificuldades de transporte e deslocamento no Brasil daquela época
Luciano Alves Pereira
A aniversariante é a BR-3, que virou BR-135 e hoje atende pela sigla BR-040. No trecho entre Belo Horizonte e Juiz de Fora, uma ou outra placa informa que aquela é a Rodovia Juscelino Kubitschek, ou via JK. Mas ninguém a conhece dessa forma. Como ocorreu com a Dutra, originalmente BR-1, deram-lhe o nome do ‘construtor’, mas, no caso mineiro, não colou. Em compensação, em termos de obras rodoviárias, JK foi muito mais longe que Dutra. Concluiu várias outras estradas pavimentadas que enfrentavam a topografia adversa e terraplenagem mais cara, deixando a sinuosidade dos vales dos rios para privilegiar o percurso mais curto.
Na manhã de 1º de fevereiro de 1957, Juscelino e comitiva partiram de Juiz de Fora, reunindo pequenos grupos de inauguração em suas paradas. Começaram pelo bairro de Barreira do Triunfo. Na vizinha Ressaquinha, repetiu-se a festa. Em Congonhas do Campo, novo ato. O ponto alto, no entanto, estava programado para o viaduto das Almas, a 60 quilômetros da capital. Por quê? O das Almas era uma obra de arte portentosa. Com sua base parecendo um ‘paliteiro’ de 30 pilares em concreto armado, no auge do ufanismo da engenharia nacional, foi projetado e executado numa perigosa curva, com 262 metros de extensão. Entre inúmeras ocorrências resultantes da temeridade, em setembro de 1967 e agosto de 1969 dois ônibus da Viação Cometa caíram de seus 30 metros de altura, matando 44 pessoas. Constatado o risco na década de 1960, mesmo assim o das Almas continuou matando, vindo a ser desativado somente em outubro de 2010. Não sem antes o governo promover o deboche da mudança do nome para Vila Rica, em 1974, com a ingênua intenção de estancar o morticínio.
No entanto, o pontilhão “jamais perderá a dignidade, apesar de não ter mais utilidade”, comenta o engenheiro Márcio Damázio Trindade, um raro sobrevivente e testemunha da festa de JK, 55 anos atrás. Ilda Marques Ribeiro Silva também estava lá naquele dia. “Vi tudo de cima do morro.” Tinha 10 anos. Hoje, com o marido Josué Correa da Silva e a filha Lucélia, toca o Restaurante e Lanchonete da Celinha, no km 588 da 040.
Única mulher entre vários irmãos, Ilda diz que o pai Totonho (Antônio Santana Marques) “ganhou dinheiro fornecendo refeições aos operários da então BR-3”. Ele tinha um pequeno comércio no ponto da estrada onde está hoje o Restaurante da Celinha. “A banda de música tocava, enquanto JK e comitiva vinham a pé pelo tabuleiro do pontilhão. Na pracinha ajardinada pelo DNER havia carros e muita gente”, relata Ilda. JK e outros foram até o restaurante e lá fizeram discursos amplificados por alto-falantes.
PENÚRIA − JK executou importante programa de pavimentação de estradas no Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Queria dar o salto de “50 anos em 5”, como era seu slogan. Só quem viveu naquela época pode entender e tentar explicar a penúria viária de então. Este repórter estudava no Rio de Janeiro e dependia dos trens sem horários da Central do Brasil para vir visitar a terra do queijo do Serro. Em janeiro de 1958, delirei ao passar de ônibus pelo viaduto das Almas, mais ainda quando cheguei à capital pelo alto. O corte da Serra do Curral, na Zona Sul da cidade, está lá. Em 1962, ‘caí’ na BR-3 com uma lambreta de 150 cilindradas, motor de dois tempos. Dava um ‘pulo’ no Rio, viajando a noite toda para aproveitar o dia de sol na praia. O retorno também era noturno, 14 horas. Claro, sempre com garupeiro. Uma vez segui até Muriaé, na Zona da Mata.
O que era ganho de infraestrutura na época virou pega para críticas. Culpam JK de haver feito a escolha do “modal equivocado, empurrando o Brasil para o rodoviarismo hipertrofiado”. Inverdade que Geraldo Vianna põe às claras no seu livro ‘O mito do rodoviarismo nacional’, de dezembro de 2007. Vianna foi presidente da NTC&Logística. Comparando dados estatísticos entre as 20 maiores economias do mundo, ele constata que o modal rodoviário nacional está na rabeira. Ou seja, não houve nem há qualquer privilégio em prol dos caminhões e seus operadores. Muito ao contrário. Na década de 1980, para dar um exemplo, no governo Geisel, destinou-se todo um valor do orçamento federal para construir a Ferrovia do Aço e não se conseguiu.
Vianna reconhece que há enorme esforço oficial de “transferência de cargas entre as modalidades”. Mas faz um alerta: “… se a transferência se der apenas em função do sucateamento ou da perda de eficiência do [modal]rodoviário − como parece ter sido, tantas vezes, a estratégia míope e desastrada de gestores públicos da área −, o tão perseguido reequilíbrio da matriz de transporte nada significará, senão que a economia brasileira, no seu todo, estará perdendo agilidade e eficiência”.
Seu brado ganha mais sentido quando Marcelo Perrupato, secretário de Política Nacional de Transportes do respectivo ministério, comenta que o governo sabe, desde já, que a ferrovia Transnordestina, que está sendo construída entre Piauí e Pernambuco a um custo de R$ 5 bilhões, não terá carga suficiente para sustentá-la. Falando no seminário ‘Plataforma Logística de Betim’, em novembro, ele também não escondeu que a obra tem objetivos eleitorais. Será mais uma ferrovia deficitária, como inúmeras no mundo, porque é assim que o trem funciona.
O que não dá para aceitar é que, enquanto isso, a BR-381-Norte (rumo a João Monlevade) não teve um metro de pista duplicado nos oito anos do governo do Lula porque a política em Minas é de oposição. Recentemente, o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, publicou outro desacato: “Alagoas tem quatro vezes mais verbas para BRs do que Minas”. Perseguidos pelo regime militar, os atuais gestores públicos federais aprenderam e aperfeiçoaram métodos. E os põem em prática, à luz do dia, contra Minas Gerais.
Chico Gomes “congelou” aquela época no L-312
O caminhoneiro Francisco Gomes da Silva não compareceu à inauguração da BR-3. Mas, perto de fazer 18 anos, em 1957, já andava pela região com tropas. Nas cangalhas, carvão vegetal. Nascido perto, em São Gonçalo do Bação, distrito de Itabirito (MG), deixou a enxada para cair na estrada. Foi ajudante de tropeiro, engraxate em Belo Horizonte, trocador e motorista de lotação. Aprendeu a dirigir num International KB5. Logo pegou uma bicudinha (MB L-312), com carroceria Vieira (de ônibus) e a partir daí começa a história do Chico Gomes, com seu Mercedes-Benz 1957, fabricado na mesma data de conclusão do viaduto das Almas. Ele o conserva até hoje, com a cabine original.
Lá por 1970, a então proprietária do veículo, Valdemira Andrade de Melo, resolveu reconvertê-lo em caminhão, sempre com o Chico Gomes ao volante. Colocaram-lhe depois uma caçamba para tentar o serviço de minério. Não funcionou. Correu para a terraplenagem e o resultado continuou fraco. Por fim, Valdemira e Chico adotaram a carroceria aberta para carga seca e jogaram o Bicudinho na estrada. “Comecei a levar carga do Rápido 900”, explica. No entanto, os ‘ganhames’ não satisfaziam. Assim, Chico Gomes decidiu parar de viajar porque “estava casado de pouco”.
Inesperadamente, a proprietária Valdemira preferiu ofertar o L-312 para “abater na rescisão”. Dali, Chico saiu dono do primeiro caminhão, o qual mantém rodando e aprumado até hoje. Ele não esconde a vaidade quando passa e percebe que está chamando a atenção.
Guindado à condição de carreteiro, Chico Gomes correu mundo. Pegava telhas de amianto na Brasilit, em Contagem (MG), descarregava em Brasília e voltava com arroz de Anápolis (GO). Em pouco tempo virou para São Paulo, passou a carregar na Asa Branca, na Interbrasil, na Novo Mundo, na Della Volpe. Nomes que fazem parte da gloriosa história do TRC nacional. Carregava de seis a sete toneladas, para entregas em Osasco, Santo André ou São Paulo. “Naquela época tinha muita carga”, comenta. No final do governo Sarney, conseguiu pegar embarques diretos do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, de placas de gesso destinadas à modernização das agências no interior. Com frete digno, comprou mais caminhões e os colocou nas mãos de parentes. Teve um cara-chata MB LP-321 por 10 anos. Sem deixar de lado o preferido L-312. “Não vou vendê-lo nunca”, afirma.
No começo da década de 1990, ele retornou ao chamado mercado aberto. Ficou com a mineira Jamef, como agregado. Finalmente, migrou para curtas entregas de ferro-e-aço.
Chico garante que sempre teve “responsabilidade ao volante”, embora confesse que “deu muita banguela” nesses 55 anos de estrada, para poupar combustível. “No viaduto das Almas, eu descia de ponto morto por ali afora.” Diz que o movimento era fraco. O são-gonçalense envolveu-se em apenas dois acidentes ao longo dessas cinco décadas ao volante, “ambos decorrentes de falhas dos outros”, conforme relata. Em um deles, teve a perna quebrada.
Chico tem um segundo caminhão, um MB 2013. Ele alterna os dois em seu trabalho atual. No entanto, sua intenção é “parar de mexer com caminhão”, apesar de “gostar muito de viajar”. Está com 72 anos. Além disso, “o trânsito não ajuda mais”. Queixa-se que está tomando medo da estrada. A seu ver, “as passagens não estão cabendo e o sufoco diário fica cada vez maior”. Chico Gomes nunca comprou caminhão zero km, por temer o risco da dívida de longo prazo. “Sempre achei que o que vale é ter o nome limpo.”