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O nome dela é Afrodite

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Caminhoneira transexual vence preconceitos e ganha respeito na família e na estrada

Nelson Bortolin

Nunca é tarde para mudar. A caminhoneira Afrodite, de 69 anos, só foi assumir sua transexualidade aos 66. Por realizar atividade dominada por homens, campo fértil para o machismo, ela vem ganhando visibilidade. Já estrelou peça publicitária da Shell Rimula, deu entrevistas à imprensa e foi homenageada em junho numa audiência pública em alusão ao Dia do Orgulho LGBT, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, em Cuiabá, onde mora.

“Eu não sou caminhoneiro que virou caminhoneira. Sou caminhoneira que estava presa no corpo de um homem”, disse ela à Revista Carga Pesada. Desde pequena, Afrodite – registrada como Heraldo de Oliveira Araújo – estranhava seu corpo. Queria ser igual às meninas. “Conforme fui crescendo, ficou pior. Não podia deixar o cabelo crescer, não podia usar isso nem aquilo”, lembra.

Na hora do futebol da escola, tinha sempre o azar de ficar no time dos que jogavam sem camisa. “Ficava constrangida. Tinha vergonha de mostrar os peitos.”

Desde adolescente, sempre que pôde, dava um jeito de usar peças íntima de mulher para se sentir melhor. Mesmo quando serviu ao Exército. Foi assim também ao trabalhar como eletricista e quando foi empresária. Também trabalhou em malharia onde fazia suas próprias calcinhas e bustiês.

Mas, liberdade, ela só ganhou quando resolveu ser caminhoneira, no final dos anos 1970. Na boleia, ficava mais à vontade para usar a roupa que queria.

Afrodite estava “quase pronta” para sair totalmente do armário quando se separou da primeira mulher, no fim da década de 1990.

Naquela época, começou a se mostrar vestida de com roupas femininas. “Carregava o caminhão nas empresas com roupa de homem, mas parava no primeiro posto, me trocava e seguia viagem vestida de mulher.” As pessoas a olhavam com curiosidade e algumas chegavam para conversar. “Eu dizia que era uma brincadeira.”

Mas o destino colocou uma segunda mulher na vida da caminhoneira. Foi uma paixão que virou tormento. A nova companheira sabia que Afrodite usava roupas femininas. De início, parecia não se importar.

A caminhoneira, que era espírita kardecista, começou a se envolver com a igreja evangélica que a mulher frequentava. Aos poucos, adotou a religião. “Fazia doações para a igreja e cheguei a pregar em cidades do interior.”

Logo, a segunda mulher se tornou implicante e intolerante. “Rasgava minhas roupas e levava irmãs evangélicas para casa para me curar fazendo orações.” Queriam “tirar o diabo” do corpo de Afrodite.

Numa cerimônia de casamentos coletivos na igreja, a caminhoneira descobriu que a união dela com a companheira também seria celebrada naquele dia. “Arrumaram para mim. Acabei casando.”

Foram 14 anos de chateações. Afrodite voltou a esconder que usava roupa feminina. “Minha mulher não deixava eu viajar sozinha, lia minhas correspondências, me vigiava o tempo inteiro.”

Ao final do relacionamento, sobravam dívidas e mágoas. Mas nasceu Afrodite.

VIDA NA ESTRADA

Ao mudar-se de São Paulo para Cuiabá no final dos anos 1970, ela comprou seu primeiro caminhão: uma F400, com o qual transportava material elétrico e de construção. Hoje, tem um Mercedes-Benz 708, ano 1988, com baú, e carrega mudanças.

Jura que somente uma vez sentiu-se desrespeitada nos últimos três anos. Um homem quis atacá-la por ser transexual, mas um colega segurou a briga. “Meu amigo chamou policiais rodoviários para pegar o cara, mas eu pedi para deixar quieto.” Os policiais, de acordo com ela, a conhecem e a tratam bem.

A caminhoneira vem conquistando respeito por onde passa. Aos poucos, conseguiu convencer os donos de postos a deixá-la usar os banheiros femininos.

Quem nunca aceitou Afrodite foram dois de seus irmãos. “Quando me viam de mulher, tiravam fotos e mandavam para a minha filha. Me xingavam, me perseguiam e até tentaram me agredir”, lamenta. Ela chegou a registrar boletim de ocorrência e entrou com ação contra os irmãos. “Ainda tenho contato com eles, mas não comentam mais sobre o assunto.”

Suas duas irmãs e a maioria dos sobrinhos a apoiam, assim com o genro e a ex-mulher. Mas o alicerce de Afrodite é a filha Tatiana, de 43 anos, mãe de sua única neta, a Vivian. “Minha filha é a razão da minha vida. Lamento não ter acompanhado toda a infância dela porque estava sempre viajando.”

Tatiana aceita naturalmente a transexualidade da caminhoneira. Só não quer que ela faça cirurgia. “Devido à minha idade, diz que é muito arriscado.”

Afrodite toma hormônios e está na fila do SUS para colocar seios. Não sabe se vai operar, mas pensa que o procedimento é necessário para ela se sentir completa. “Gostaria de fazer minha cirurgia porque, quando me sentir mulher por completo, posso arrumar um companheiro.” Ela nunca se relacionou com um homem. E não se identifica como homossexual e nem heterossexual. “Estou fazendo terapia para me entender.”

Reencarnacionista, tem certeza que já viveu em corpo de mulher em outra existência. “Desta vez, vim com a missão de homem para trazer minha filha à vida.”

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