As mulheres estão cada vez mais presentes ao volante dos caminhões de carga. Trazem sua delicadeza que também é a sua força – seu modo de agir tipicamente feminino se reflete em cuidados que diminuem os acidentes de trânsito. Mas a eficiência é a mesma dos homens. Nesta reportagem, no mês do(a) caminhoneiro(a), apresentamos quatro motoristas de fibra. A primeira está esperando nenê! E confia tanto em si que vai continuar ao volante até a última hora. Leia e veja como é bom contar com o exemplo de mulheres assim
Nelson Bortolin
Não é para qualquer uma. Imagine uma mulher pilotando um caminhão carregado aí pelas estradas a uma semana de dar à luz. É isso que pretende fazer a gaúcha Sheila Marchiori, 33 anos, cujo parto está previsto para o início de dezembro. E ela planeja voltar às estradas assim que terminar a licença-maternidade. O bebê – um menino que se chamará Bernardo – irá junto, diz ela.
“Para mim, é tudo muito natural. Meu filho foi planejado para viver no caminhão. Vai crescer sabendo de onde vem seu sustento”, afirma Sheila. Funcionária da Bellaver, especializada em carga refrigerada com sede em Farroupilha (RS), a gaúcha já sonha com uma cadeirinha para o bebê, instalada com segurança na cabine do novo caminhão que a empresa lhe prometeu. “Vai ficar aqui, do meu lado.”
Mãe de três adolescentes, ela não se assusta com a primeira gravidez que vive dentro da boleia. “Já sei o que é ser mãe. E pretendo viajar até a médica me avisar que a cesárea será na semana seguinte.”Bonita e vaidosa, Sheila começou a trabalhar como caminhoneira há cinco anos. É muito conhecida no trecho, graças a um canal no YouTube com quase 50 mil inscritos. Antes, chegou a ter 102 mil seguidores no Facebook. Mas foi hackeada e perdeu todo o conteúdo que era alimentado com a ajuda da filha e do marido Wiliam Banzer. O caminhão que ela dirige, um Scania Highline 480, ano 2015, também brilha na estrada. “Gosto de vê-lo limpo e polido. Sempre trabalhei em caminhão novo. Tive a sorte de começar numa empresa muito boa”, afirma.
Sheila nunca enfrentou problemas mecânicos na estrada, mas já andou com carretas refrigeradas antigas que costumavam quebrar. “Aí, tu vai lá, abre e resolve com alicate e um rolo de arame. Os equipamentos mais antigos são mais fáceis de consertar”, minimiza. Normalmente, a gaúcha faz rotas do Sul para o Sudeste. Diz que está “no paraíso”, porque consegue ir sempre para casa. “Isso traz qualidade de vida.”
Sheila Marchiori mora em Lagoa Vermelha (RS) e diz não sentir preconceito pelo fato de ser mulher. “Tive um pouco de dificuldade para entrar na profissão por falta de experiência e porque tinha três filhos pequenos. Mas depois não houve mais problemas. Fiquei conhecida. Sou muito querida pelos clientes e pelos colegas.” Para a gaúcha, não há segredos: “Quem chega tratando bem, sempre será bem tratado”.
A caminhoneira conta por que gostou da lei que exige exame toxicológico para os motoristas profissionais, que entrou em vigor em março. “Tem muito drogado aí atrás de um volante. É claro que não é só de caminhão, é de carro pequeno também. Eu sou totalmente contra qualquer tipo de vício pela criação que tive”, dispara. E aconselha: “Para quem não pretende usar drogas, esta é a hora de entrar na nossa profissão. Estão sobrando vagas”.
Com o apoio da família
Morando em São Paulo há 36 anos, a catarinense Solange Emmendorfer é outra guerreira do asfalto. Abraçou a profissão há 14 anos. Para aumentar a renda da família, começou tirando a CNH na categoria D, para trabalhar com transporte escolar. Mas um anúncio no jornal a levou ao transporte de cargas. “Não mencionava experiência. Eu nunca tinha dirigido caminhões. Fiz o processo seletivo e a empresa me contratou”, conta. A empresa é a Braspress, com sede em Campinas, que tem tradição em recrutar mulheres.
Solange recebeu treinamento e migrou para a habilitação E. De início, pilotava caminhões de porte pequeno. “Hoje, dirijo um Axor 1944”, conta. Sua rota mais frequente é entre Guarulhos e Campinas. Mas também faz tiros mais longos, até Florianópolis, pela BR-116. “Tanto nos postos como nas empresas, sempre fui tratada com muito respeito e admiração por todos”, explica.
Preconceito, diz que nunca sofreu. “De vez em quando, aparece algum motorista que olha de canto de olho. Mas a gente tem de mostrar que está trabalhando lado a lado com ele, e que não quer tirar o lugar de ninguém”, ressalta. Casada, com três filhas e uma neta, ela encontra apoio na família para exercer sua profissão. “Meu marido me dá um suporte fundamental em casa para eu poder viajar com tranquilidade.”
Sobre o exame toxicológico, Solange lembra que a Braspress o exigia muito antes da lei. Ela acredita, inclusive, que o número de acidentes já diminuiu. “Falo do que vejo: via acidente todo o dia, e agora não.”
Na opinião de Solange, é fundamental que as empresas cuidem da saúde de seus motoristas. “Na Braspress, existe um centro de apoio. Antes de seguir viagem, fazemos o teste do bafômetro, verificamos a pressão arterial e a temperatura do corpo. Se tiver algo errado, a gente nem sai”, conta.
Para a vida melhorar nas estradas, ela pede a implantação de pontos de parada estruturados. “Precisamos de estacionamentos exclusivos, com boa estrutura, segurança, banheiro limpo, alimentação saudável a um preço justo. Quem sabe veremos isso no futuro.”
Ao lado do marido
A paranaense Marlene Heinen tem uma história diferente das colegas: 15 anos atrás, ela “foi morar” no caminhão com o marido Eleseu Heinen, para dividir o volante com ele. Tomou essa decisão depois de ver os filhos criados. Tirou a carteira E e foi. Eleseu já estava no trecho havia mais de 17 anos. Autônomos, hoje eles se revezam ao volante de um Volvo FH 2007. São casados há 38 anos.
“Eu nunca quis que meu esposo precisasse tomar rebite. Por isso vim viajar também. Revezando na direção, temos uma vida mais saudável e podemos rodar mais. Gosto muito disso”, explica.
O principal desconforto, segundo Marlene, é a falta de estrutura específica para mulheres nos postos. “Uso o banheiro masculino e meu marido fica na porta vigiando. Para as mulheres que viajam sozinhas deve ser ainda mais difícil”, declara.
A falta de bons banheiros parece incomodar mais que os riscos da violência. “Já fomos assaltados e ficamos com revólver apontado para a cabeça. É um trauma, mas depois passa. Não é um problema só da estrada. Hoje não existe lugar seguro.”
Carregando carga fracionada, o casal viaja do Paraná ao Maranhão para poder pagar as prestações do caminhão em dia. Marlene também é favorável ao exame toxicológico porque vê “muita loucura na estrada”. Ela e o marido, porém, têm motivos de sobra para andar contentes: acabam de ganhar um carro do Clube Irmão Caminhoneiro
Braspress foi pioneira em contratar mulheres
A Braspress contrata mulheres para dirigir caminhões desde 1999. Segundo a assessoria da empresa, a ideia pioneira foi do diretor-presidente, Urubatan Helou. De acordo com os controles internos da transportadora, as mulheres “têm maiores cuidados operacionais com os veículos e também dirigem com maior prudência”. Além disso, segundo a empresa, elas incentivam os homens a fazerem o mesmo. A tabela salarial é a mesma. “Hoje temos um quadro de 833 motoristas, sendo que 110 são mulheres”, diz a assessoria.