Se existe um segmento no qual a Lei do Descanso (12.619) está longe de ser respeitada, é o de transporte de frutas, verduras e legumes (ou, simplesmente, hortifrúti). Basta conversar com comerciantes e caminhoneiros numa central de abastecimento (ceasa), em qualquer cidade onde exista uma, que eles dão uma radiografia da situação. A coisa é feia, conforme constataram os repórteres da Carga Pesada. Nesse setor, o que “é de lei” é a carga horária, com horários bem apertados, e o pagamento de comissão e “por fora” para motoristas que cumprem jornadas suicidas, colocando em risco a própria vida e a dos outros para “salvar” cargas perecíveis. Nas próximas páginas, você vai conhecer o funcionamento de um mercado que, por praticar o frete de retorno aviltante, ainda acaba prejudicando outros setores do transporte de carga
Nelson Bortolin, Janaina Garcia e Guto Rocha
É fácil dar um palpite sobre a razão mais comum para haver pressa no transporte de hortifrúti: a maioria dos fretes é feita em implementos sem refrigeração e a carga estraga se demorar a chegar ao destino. Outra razão aparece menos aos olhos do público, mas talvez seja mais forte: o setor é dominado pelo transporte de carga própria, isto é, os produtores e comerciantes têm seus caminhões, mas não são transportadores profissionais. Quando têm pressa na entrega, mandam o motorista – que é empregado deles – “se virar” pra cumprir o prazo, até com um dinheirinho por fora. E como os motoristas “se viram”?
G.H.S.A., pouco mais de 30 anos, admite que usa rebite. “Tem que tomar. Motorista que fala que não toma é mentiroso, ainda mais quando a gente é obrigado a cumprir horário”, afirma.
Ele tinha chegado a São Paulo com uma carga de abóbora, vinda de Minas Gerais, no dia 26 de julho, quando a reportagem o entrevistou na Ceagesp. Tinha saído às 8 da noite do dia 24 com a intenção de cobrir 900 km numa carreta comum até a tarde do dia seguinte. “Mas um acidente na Fernão Dias me atrasou e ao chegar encontrei a loja fechada”, explicou.
Ele diz que, com certas cargas, a pressão do patrão e do destinatário é maior, porque estragam mais rápido, como a banana-prata. “Com a abóbora, nem tanto. Aí a pressa é minha”, diz. Seu ganho é por comissão.
G.H.S.A. conta que ganha 12% da produção do caminhão. E mais uma “ajuda de custo” do embarcador, se cumprir o horário. “O sujeito me diz: ‘Se essa maçã chegar ao destino até as 16 horas, te dou R$ 100 pro guaraná’.”
Ezequias Correia dos Santos, 56 anos, de Londrina (PR), costuma fazer 2.280 km em 30 horas direto, sem dormir – mas fora do Brasil. Esse é o tempo que ele leva entre Foz do Iguaçu e Mendoza, na Argentina. É empregado da empresa Fruta da Alpha e traz frutas da região de Mendoza para Londrina, numa carreta refrigerada. Na volta, leva defensivos agrícolas.
Ezequias admite que já tomou rebite, mas parou. “De 1978 a 1991, quando fazia o rapidão para o Nordeste, eu tomava bastante. Agora, me basta o chimarrão.” Mesmo assim, justifica a pressa: “Caminhão tem de rodar. Senão, o motorista não ganha dinheiro e o patrão não consegue pagar o financiamento”.
Ele diz que, se a Lei do Descanso tiver de ser cumprida, “o Brasil quebra”. “O caminhoneiro, se estiver muito cansado, só precisa encostar e dormir um pouco para seguir viagem”, acredita.
Autônomo que escolhe hortifrúti pra transportar também já sabe: não dá pra vacilar. “Se parar pra descansar, no caso de algumas frutas, não chegam boas”, diz André Vieira da Silva, 32 anos, paulistano do Jaguaré. “Com perecíveis, só com dois motoristas para cumprir a lei, e olhe lá”, comenta.
Entrevistado na Ceagesp com uma carga de milho numa carreta comum, Silva diz que o milho murcha se ficar muito tempo parado. “Mesmo legumes e hortaliças como alface, por mais que você leve o produto em isopor e gelo, ele não chega 100%. Imagine parando 11 horas de um dia pro outro.”
O mineiro Antônio Carlos Souza Machado, de Frutal, diz que, se o motorista for cumprir a lei, perde o frete. “Não é só o problema da carga estragar. O dono quer vendê-la no melhor dia da semana. Então, os horários são bem apertados”, explica.
O comerciante-transportador se queixa do lucro do hortifrúti
A atividade principal de Edivânio Teles dos Santos, o Mosquitinho, é o comércio de hortifrúti. Ele tem um box na Ceasa de Londrina. Mas também tem uma transportadora para entregar seus produtos. “O lucro do hortifrúti é pequeno, tem de ter o transporte junto”, diz ele, que é dono de sete trucks e duas carretas, nenhum frigorificado.
Sua frota leva frutas do Sul da Bahia para o Paraná e transporta cargas diversas para o Nordeste, inclusive alguns hortifrútis. “Também levo móveis e transformadores”, afirma. O frete anda muito ruim, segundo ele, principalmente do Nordeste para o Sul. Um truck carregado com batata-doce para a Bahia fatura R$ 6 mil brutos. E ele só consegue R$ 3,2 mil para voltar carregado, por exemplo, com manga. “Tem caminhão sobrando por lá”, informa.
Segundo Mosquitinho, não há como cumprir a Lei do Descanso. Seus motoristas fazem os 2.700 km de Londrina a Juazeiro (BA) em três dias, dormindo duas vezes nesse intervalo, três ou quatro horas cada vez. “Chegando na hora, eles ganham um cafezinho do dono da carga.” O “cafezinho” é de R$ 100. “Eles dizem que não usam rebite, mas eu não posso garantir, né?”, comenta o patrão.
Mesmo que tivesse carreta frigorificada, Mosquitinho diz que seria difícil cumprir a Lei do Descanso, com algumas cargas, como manga e goiaba, que não aguentariam mais de quatro dias na estrada para fazer os 2.700 km, mesmo com a temperatura sob controle.
Recentemente, ele andou perguntando e viu que uma carreta frigorificada custa R$ 214 mil. “A aberta saiu por R$ 90 mil. Não tenho como pagar a diferença”, afirma.
O transportador profissional: “O que falta é planejamento”
Otávio Brehm é um caso raro de transportador que não produz nem faz comércio de hortifrúti, mas se dedica a cargas perecíveis. A Brehm Transportes, sua empresa, fica em Vacaria (RS). Entre outras mercadorias, leva frutas para o Nordeste e o Centro-Oeste e volta carregado com produtos frigorificados.
Ele garante que a Brehm, com seus 68 veículos, está respeitando a Lei 12.619. “Nenhum motorista dirige
mais que 10 horas por dia”, atesta. E diz que há uma concorrência difícil com quem não a cumpre. “Os prazos nesse mercado são exíguos, muito mais porque falta planejamento do que pelo fato de as cargas serem perecíveis”, explica.
Nos cálculos do diretor, não é possível rodar mais de 600 km por dia cumprindo a Lei do Descanso. Por isso, suas viagens ao Nordeste costumam durar seis dias. “Temos clientes que têm caminhões próprios e reclamam desse prazo. Dizem que, com os caminhões deles, a viagem dura três dias.” O empresário cobra do governo a fiscalização da lei para acabar com essas distorções.
O presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de São Paulo (Setcesp), Manoel Souza Lima Jr., diz que os produtores e comerciantes de hortifrúti se incluem num grupo de transportadores de carga própria “que querem fazer o escoamento de sua produção ficando à margem da lei”. Para ele, essas pessoas não se importam de fazer o motorista “rodar 18 horas por dia em busca de produtividade”.
Segundo Lima Jr., eles são contra a formalização do segmento, pois no retorno das viagens que eles fazem para as ceasas, levam qualquer coisa só para cobrir o custo, e, com isso, aviltam o valor dos fretes.
Já o presidente do Sindicato dos Caminhoneiros Autônomos de São Paulo (Sindicam), Norival Almeida Silva, usa a palavra “prostituído” para se referir ao mercado de transporte de hortifrúti – “está prostituído pela carga própria”. “O cidadão é produtor de hortifrúti ou comerciante e tem caminhão como autônomo. Ele põe empregado para dirigir. Isso acontece na maioria dos casos. Ou, quando não tem caminhão, contrata autônomo. Leva sua própria carga e volta carregando qualquer coisa a qualquer preço”, afirma.
Norival espera que, na renovação do Registro Nacional do Transportador Rodoviário de Carga (RNTRC), que começa a vencer no segundo semestre do ano que vem, para quem fez em 2009, a ANTT aja com rigor, cassando o registro dos que trabalham à margem da lei.
O efeito do rebite só dura quatro horas
Ao contrário do que alguns pensam, o rebite é uma droga perigosa. O médico Dirceu Rodrigues Alves Jr., da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), explica que o rebite é uma anfetamina, substância que estimula o sistema nervoso central, inibe o apetite e causa insônia – daí o seu uso por aqueles que desejam ficar acordados.
Alves Jr. observa, no entanto, que o efeito do rebite só dura cerca de quatro horas. Daí o usuário que quer se manter acordado tem que tomar outro e depois outro e depois… “O problema é que, quando a dose atinge um pico no sangue, o usuário pode sofrer um apagão repentino da mente”, explica. Ou mesmo do coração. Esse é um dos efeitos mais graves da droga, capaz de causar acidentes muito graves nas rodovias.
Mas os males do rebite não param por aí. O usuário de anfetamina pode ficar dependente (viciado). Outro problema é a desnutrição, porque diminui a fome. “O rebite provoca hipoglicemia, que é a diminuição do açúcar no sangue, causando o embotamento do cérebro, tonturas, náuseas, vômito e, finalmente, o estado de desnutrição”, afirma o médico.
Pior estão fazendo os caminhoneiros que usam maconha e cocaína. Segundo ele, é uma mistura “extremamente perigosa”. “Essas drogas também dão insônia, mas provocam alterações visuais. O usuário perde a visão lateral e de profundidade. E ainda tem alucinações, principalmente à noite”, explica.
Para o procurador do Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso do Sul, Paulo Douglas Almeida de Moraes, a percepção de que é normal se drogar para produzir salário para o motorista e lucro para o patrão é “subproduto do sistema de transporte rodoviário que a Lei 12.619 visa eliminar”. “É preciso dar um basta a esse genocídio rodoviário intencionalmente provocado em nome do lucro”, declara. Genocídio, pra quem não sabe, é a eliminação (assassinato) regular de indivíduos de um certo grupo – neste caso, principalmente, os caminhoneiros.
Projeto que muda a lei aguarda votação
Tramita sob o número 5.943/2013 na Câmara dos Deputados o projeto de lei que altera a Lei do Descanso (Lei 12.619). Até o fechamento desta edição, a proposta não havia sido analisada pela Comissão de Viação e Transporte.
O projeto é de autoria da comissão especial de deputados que foi criada para propor alterações na Lei do Descanso. As mudanças atendem aos interesses dos grandes produtores rurais, cujos representantes formaram maioria na comissão.
Para o procurador Paulo Douglas Almeida de Moraes, do Ministério Público do Trabalho (MPT), o projeto causa deformações na lei e “legitima a exploração dos motoristas profissionais brasileiros”. “Espero que os deputados não o aprovem”, afirmou.
O chefe do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional, da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), Dirceu Rodrigues Alves Jr., também é contra as mudanças propostas. Segundo ele, não se deve autorizar um motorista a dirigir de forma contínua por até seis horas. “Com quatro horas de trabalho, o profissional já passa a ter lapsos de atenção”, disse.
Reduzir o intervalo entre jornadas de 11 horas ininterruptas para oito horas ininterruptas, de acordo com ele, também é perigoso. “Não é suficiente para o descanso e os motoristas vão continuar trabalhando a média de 13 horas por dia. Alguns olham para o trabalho do motorista como se ele fosse um turista viajando, mas a vida dele é muito diferente disso”, critica.
Apesar de a Lei do Descanso ter completado um ano em maio, seu cumprimento ainda não é fiscalizado nas rodovias brasileiras. Só o Ministério Público do Trabalho está atento.