Nos terminais de transbordo da ALL em Mato Grosso, transportadores de soja não têm como usufruir da Lei do Descanso, porque precisam ir puxando o caminhão em lentas filas que duram mais de 24 horas. E descobrimos que outros problemas de todos os anos – falta de banheiros e de restaurante decentes, mau cheiro do lixo acumulado e até o risco de levar picada de cobra – continuam presentes, apesar da negativa da ALL em notas que não condizem com a realidade
Nelson Bortolin
Enviado especial a Mato Grosso
A Lei do Descanso (12.619), que ainda está longe de ser cumprida à risca, teve um efeito importante sobre o transporte de grãos na atual safra em Mato Grosso. Os caminhoneiros empregados estão trabalhando menos, deixando de dirigir madrugada adentro. Ao contrário do que se imagina, não é a falta de vagas de estacionamento a maior inimiga da lei por lá. Esse problema os motoristas driblam estacionando em grupo nas entradas das fazendas, alguns nos acostamentos.
O bicho pega de verdade quando eles se aproximam dos terminais de transbordo da soja para o trem. Nesses locais, continuam existindo filas intermináveis, que dão um passinho de cada vez, 24 horas todos os dias. Desse jeito, como descansar 11 horas seguidas entre dois dias, como manda a lei?
De 20 a 23 de fevereiro, a reportagem da Carga Pesada esteve em Rondonópolis e percorreu a BR-364 até o terminal da ALL em Alto Araguaia. Conversamos com dezenas de caminhoneiros. “Como é que a gente vai descansar com esse alto-falante gritando o tempo todo?”, questionou o empregado Nivair Belo Mesquita, de Santa Elvira (MT). Ele estava no pátio principal do terminal.
No local, segundo a ALL, cabem 500 veículos, e os motoristas esperam em filas de até um quilômetro – isso quando o pátio principal e o outro, no extremo oposto do terminal, não estão lotados. Porque, se estiverem, as filas avançam pela rodovia. “Aqui, a gente escuta o alto-falante, mas lá no final da fila é o funcionário que bate na janela para nos acordar”, conta Mesquita. Essa função dura 24 horas porque o terminal não para.
Embora a ALL diga que a espera em Alto Araguaia dure em média cinco horas, nos dias em que a reportagem esteve por lá nunca foi menor que 24 horas. “Quando a fila alcança a rodovia, a gente fica até três dias esperando”, conta José Gilberto Dozzi Tezza, de São Paulo.
E o problema não é só a fila. No pátio, os locais para higiene e alimentação são de doer. Tem gente que já encontrou cobras! “A bem dizer, fazem o que querem com a gente. Hoje fiquei duas horas na fila da pista. Veio a Polícia Rodoviária e jogou a gente no outro pátio, onde não há condições para nada”, desabafa Tezza.
Ademir Teixeira de Souza, de Alto Paraná (PR), faz a mesma queixa. “A gente fica lá (no segundo pátio) dois dias sem tomar banho. E de vez em quando encontra uma cascavel. Aqui (no pátio principal), o restaurante é uma nojeira. E temos que andar mais de um quilômetro pra fazer a classificação”, afirma. O guichê onde um funcionário da ALL recebe os documentos da carga fica no extremo oposto à entrada.
Nivair Mesquita puxa soja para Alto Araguaia há três anos. Tem autoridade para dizer: “Não temos água pra beber e sempre falta para o banho. Quando tem água no banheiro, é fria porque cortaram os fios do chuveiro. As cascavéis tropeçam uma na outra. E o lixo está sempre fedendo”.
De fato, na noite do dia 23, como constatou a Carga Pesada, os motoristas esperavam pela volta da água no banheiro. E os fios dos chuveiros estavam cortados.
Carta-frete continua firme e forte
Para os autônomos que transportam a safra em Mato Grosso, a vida parece que não mudou nada. Até a forma de pagamento de fretes continua a mesma: a carta-frete, que foi proibida por uma resolução da ANTT em 2011, segue firme e forte por lá. “A lei ainda não foi colocada em prática. Quando for, vai ser bom para nós, porque vai sobrar mais carga”, diz Volnei Menin, de Estação (RS).
O “vai ser bom pra nós” tem a ver com um fato recente relatado por Volnei: ele conseguiu uma carga para a Bahia porque a transportadora preferiu não mandar o empregado devido à Lei do Descanso.
Sobre a carta-frete, o gaúcho diz que ainda é usada “por baixo dos panos”. Não foi o que a reportagem viu nos postos de Rondonópolis: ali a carta-frete é trocada sem cerimônia pelos funcionários.
Fabrício Pedro Roman, de Nova Londrina (PR), diz que sua vida não mudou nada por enquanto. Ele dorme apenas quatro a cinco horas por noite. “Para mim, vai ser legal poder descansar 11 horas. Mas, do jeito que estão as estradas, sem estrutura nem segurança para descansar, nós só vamos conseguir fazer duas viagens por mês”, exagera.
Dono de um Iveco Stralis 2011 e de um bitrenzão, Fabrício fatura bruto entre R$ 55 mil e 60 mil por mês. “Sobram R$ 15 mil. Está bom. Meu pai tem propriedade no Paraná e não tira R$ 8 mil.”
Em relação à carta-frete, Roman diz que a maioria das empresas ainda a utiliza, embora esteja proibida desde maio do ano passado. Em resposta a questionamento da Carga Pesada, a assessoria da ANTT disse que os agentes de fiscalização “têm intensificado as operações com foco no Pagamento Eletrônico de Frete, inclusive dentro das dependências das empresas de transporte rodoviário de carga” em todo o País.
Nas primeiras fiscalizações, de acordo com o órgão, cerca de 90% dos transportadores abordados sofreram autuações. “Este percentual vem caindo, demonstrando o cumprimento cada vez maior da legislação”, diz a nota da assessoria.
Agronegócio tenta mudar a lei…
Assustados com o aumento do frete nesta safra (uns falam em 30%, outros em mais), representantes do agronegócio pediram mudanças ou o adiamento da Lei do Descanso, num encontro com a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, dia 25 de janeiro. O presidente do Movimento União Brasil Caminhoneiro, Nélio Botelho, estava com eles. Mas ouviram da ministra que esse assunto é com o Congresso.
O coordenador do Movimento Pró-Logística da Associação dos Produtores de Soja de Mato Grosso, Edeon Vaz, reclama do aumento do frete, mas admite que não sabe quanto a Lei do Descanso onerou os fretes. Também não soube dizer qual é a proposta que o setor está negociando com a bancada ruralista no Congresso.
Dirceu Capeleto, diretor da Transportadora Bergamasco, de Rondonópolis, afirma que os produtores estão enganados ao atribuir o aumento do frete à Lei do Descanso. “Existe uma defasagem de oito anos no frete e existe a lei do mercado: o aumento da safra permitiu o reajuste”, ressalta.
Capeleto diz que a Bergamasco é uma incentivadora do cumprimento da lei. “Vínhamos acompanhando as discussões e sabíamos que ela viria. Nossa empresa está organizada para ser fiscalizada, mas a grande maioria das empresas não está e nem cumpre a lei”, declara.
…que não é fiscalizada
Para o procurador do Ministério Público do Trabalho, Paulo Douglas de Moraes, a Lei do Descanso não está sendo cumprida porque “há uma inércia injustificada por parte da Polícia Rodoviária”.
No posto da PRF próximo de Alto Araguaia, a reportagem conversou com o agente Carvalhal. Segundo ele, a orientação é para que a fiscalização seja feita. “Mas o efetivo é muito pequeno. Aqui, somos em dois policiais para um trecho de 150 quilômetros”, justifica.
Buracos que não acabam mais
A situação das rodovias em Mato Grosso, tanto estaduais como federais, torna a vida dos caminhoneiros ainda mais difícil. As chuvas ininterruptas por mais de 30 dias no início deste ano pioraram o que já era ruim. A reportagem encontrou dois trechos onde caminhões e carros têm que fazer zigue-zague, potencializando o risco de acidentes. Um deles tem 100 quilômetros na BR-364, de Rondonópolis em direção a Alto Araguaia. E outro fica na MT-100, próximo a Alto Araguaia.
Sobre esse problema, a assessoria de imprensa do DNIT informou que vem realizando operações tapa-buraco regulares, principalmente nos 100 quilômetros que estão em pior situação. Existem obras previstas para a recuperação da estrada, a serem contratadas ainda neste semestre, afirma a nota enviada à Carga Pesada.
O caos do trânsito em Rondonópolis
“Esta é a capital das obras inacabadas”, diz o diretor executivo da Associação dos Transportadores de Cargas de Rondonópolis (ATC), Miguel Mendes. Refere-se a um viaduto feito há 15 anos, na entrada da cidade, que espera até hoje pela construção de três de suas quatro alças, e também ao abacaxi da duplicação da Travessia Urbana, que deveria ter ficado pronta há pelo menos dois anos.
A duplicação é um problema com 12,8 quilômetros de extensão. Inferniza a vida dos moradores e agrava o caos do escoamento da soja em direção aos terminais da ALL. Não há como chegar ao trem sem passar pelo trecho urbano da BR-364. Um caminhão pode levar uma hora para atravessar o trecho em certos horários.
Cada vez que é preciso interditar parte da pista para fazer o serviço que nunca acaba, o congestionamento é enorme. Como acontece num trecho em que está sendo feita uma passagem sob a via, para ligar dois bairros.
A preocupação da ATC com o problema cresce à medida que se aproxima a data da inauguração do Terminal da ALL em Rondonópolis. É em abril. “Estimamos que 80% dos caminhões que hoje vão para Alto Araguaia farão o transbordo da soja aqui”, conta.
Segundo o secretário municipal da Infraestrutura, Fábio Cardoso, a obra da duplicação da Travessia Urbana se arrasta desde setembro de 2009 e deveria ter sido concluída em maio de 2011, mas foram encontradas tantas falhas no projeto e na execução que a obra ficou parada por mais de um ano.
“O projeto previa, por exemplo, seis centímetros de pavimento, mas no meio da execução foi necessário passar para dez centímetros. A drenagem foi subdimensionada e a lateral da pista arrebentou em alguns trechos”, informa. Para piorar, a empreiteira que ganhou a licitação está em fase de recuperação judicial. “Foi um erro a prefeitura ter assumido isso”, diz ele, que não descarta entregar a obra ao DNIT.
Explicações da ALL
Por meio da assessoria, a ALL apresentou justificativas para os problemas relatados nesta reportagem. Em relação à falta de água, disse que foi uma situação pontual causada pelo excesso de caminhões no pátio naquele dia. “Havia 800 caminhões parados apenas no pátio da ALL, o que normalmente não acontece”, diz a nota enviada à redação.
Sobre o corte dos fios dos chuveiros, a empresa alega ter uma “área de manutenção”, que faz uma ronda diária para verificar “possíveis avarias”. “A equipe já está trabalhando para resolver a questão”, diz a assessoria.
Em relação ao lixo acumulado no pátio, a ALL diz que faz manutenção diária nas instalações do terminal e que a coleta de lixo é realizada em parceria com a prefeitura, que envia um caminhão ao local duas vezes por semana.
Quanto às cobras, a empresa esclarece que o terminal fica ao lado da floresta de cerrado e próximo ao pantanal, cuja fauna é preservada. “A movimentação desses animais foge do controle da companhia. Ainda que a existência de tamanduás e cobras seja frequente na região, nunca foi registrado caso de ataque.”
Novo terminal terá “melhor estrutura para o caminhoneiro”
Os problemas enfrentados pelos caminhoneiros em Alto Araguaia não vão se repetir em Rondonópolis, cujo terminal de descarga de grãos deve ser inaugurado em abril e será o maior do País. Para chegar a Rondonópolis, a ALL investiu em mais 260 quilômetros de trilhos.
O pátio de estacionamento, com 162 mil metros quadrados, terá, segundo a empresa, uma pré-triagem dos caminhões para facilitar a entrada e a saída, e vai oferecer áreas de apoio para motoristas com banheiros equipados com chuveiros e um refeitório.
Ainda estão previstos um hotel com 100 quartos e um shopping center. O posto de abastecimento, segundo a empresa, poderá atender 1.500 caminhões/dia, oferecendo serviços de borracharia, oficina e conveniência.
No local, também irá funcionar um complexo logístico intermodal em parceria com clientes da ALL, para concentração e armazenamento de cargas, que vai ocupar 400 hectares.
A operação do terminal começará com o transporte de 10 milhões de toneladas/ano, mas a capacidade será de 30 milhões de toneladas. A produção total de Mato Grosso nesta safra é estimada em menos de 25 milhões de toneladas de grãos.