O número de roubos de cargas no Estado do Rio – principalmente na região metropolitana do Rio de Janeiro – praticamente triplicou de 2013 para 2016. A explicação das autoridades: os traficantes de drogas viram que roubar cargas é fácil e dá bons lucros
Transportar mercadorias no Estado do Rio de Janeiro tornou-se uma atividade muito arriscada nos últimos anos. Os roubos de cargas quase triplicaram entre 2013 e 2016: o número saltou de 3.534 para 9.870 por ano. A média chega a 190 roubos por semana, ou 27 por dia – incluídos os domingos. A grande maioria ocorre em bairros da capital e em cidades da Baixada Fluminense. O epicentro da criminalidade é o Complexo do Chapadão, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, local próximo a várias rodovias e vias expressas importantes.
A situação se agravou num momento em que o Estado está sem dinheiro para nada, e não consegue sequer pagar em dia os salários dos servidores públicos e dos aposentados. Mas o problema do aumento dos roubos de cargas de caminhões vem de antes – de quando esse tipo de crime passou a ter estreita ligação com o tráfico de drogas.
O delegado Maurício Mendonça de Carvalho, titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas do Rio de Janeiro, explica que os traficantes de drogas “descobriram” o roubo de cargas em 2012. “Antes, só quadrilhas especializadas roubavam cargas. Não eram muitas. Mas quando os traficantes viram que podiam ganhar um dinheiro fácil com o roubo de cargas, houve essa explosão de ocorrências”, alega.
O maior interesse dos bandidos não está em cargas de grande valor, mas em gêneros alimentícios, bebidas e cigarros, que são os produtos mais fáceis de vender. E o modo de agir dos assaltantes é bastante simples, segundo o delegado: alguém, numa motocicleta, aborda o motorista com o caminhão em movimento e avisa que existe um veículo com bandidos armados atrás dele; se não desviar seu caminho, leva bala. “O motorista é obrigado a seguir a motocicleta até a comunidade, onde o caminhão é descarregado.”
Carvalho tem boas razões para desconfiar que, em muitas ocorrências, haja funcionários das transportadoras envolvidos nos crimes. “São pessoas de dentro das empresas que avisam os marginais sobre as rotas e as mercadorias que estão sendo transportadas”, afirma.
Ele admite que, com o Estado sem dinheiro, está difícil combater esses crimes. No dia em que ele atendeu a reportagem, 16 de fevereiro, a Polícia Civil havia acabado de entrar em greve.
Uso de caminhão blindado é cada vez mais frequente
O crescimento dos roubos de cargas abriu uma oportunidade de negócios para as empresas de segurança. É o caso da Protege (foto ao lado), que há 45 anos atua em segurança patrimonial e transporte de valores. No final de 2012, ela passou a transportar também eletroeletrônicos, medicamentos e cigarros em caminhões e carretas blindados.
“Atuamos principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, levando matéria-prima do aeroporto para as indústrias e produtos das indústrias para os centros de distribuição e grandes varejistas”, informa o diretor-geral do grupo, Mário Baptista de Oliveira. Ele explica que a empresa trabalha com carretas grandes, caminhões médios e veículos urbanos de carga (VUCs). “A demanda por nossos serviços tem aumentado proporcionalmente à ameaça dos criminosos”, declara.
Oliveira diz que compensa para o cliente contratar os serviços da Protege. Embora o frete seja mais caro, a empresa consegue melhores coberturas de seguro. “As transportadoras que trabalham com cargas de alto valor agregado têm de fracionar as cargas porque não conseguem seguro no valor total. Mas nós não precisamos fracionar.” Além disso, segundo ele, os veículos blindados dispensam escolta. “Quando coloca na ponta do lápis, o cliente vê que vale a pena.”
Mário Baptista de Oliveira não conta qual é o tamanho da frota, mas diz que ela é “relevante e está em amplo crescimento”. E o transporte de cargas, segundo ele, é o negócio que mais tem crescido na empresa.
Custos com segurança serão cobrados dos clientes, dizem os transportadores
O gerente regional da Braspress no Rio de Janeiro, Aguinaldo Ramos, admite que, sem escolta, já não se faz entrega de cargas em alguns pontos da região metropolitana do Rio de Janeiro. Ele informa os nomes de bairros e cidades próximas que estão nessa lista: “Não dá para entregar produto em São Gonçalo, Pavuna, Bangu, Vila Kennedy e imediações sem escolta. E isso representa um custo a mais para nós”.
De acordo com o gerente, uma escolta com dois vigilantes armados custa cerca de R$ 800 por quatro horas. E nem ela garante segurança. “Já tivemos ocorrências com caminhão escoltado”, diz.
Em recente evento dos transportadores rodoviários de cargas, eles decidiram cobrar esse custo a mais dos clientes. Surgiu até o nome de uma taxa – Taxa de Emergência Excepcional – que tem sigla (Emex), a ser cobrada para rodar no Rio. Foi fixada em R$ 10 por fração de 100 quilos, mais um percentual do valor da carga (entre 0,3% e 1%). Tudo isso foi definido em reunião do Conet – Conselho Nacional de Estudos em Transporte, Custos, Tarifas e Mercado, ligado à NTC&Logística.
Além da necessidade de escolta, as transportadoras enfrentam problemas com seguros. “Para fazer seguro de carga no Rio de Janeiro, hoje, a franquia parte de 30%”, completa Ramos.
O empresário Markenson Marques, da Cargolift, de Curitiba, informa que só transporta carga de alto valor agregado com escolta, mesmo fora do Rio de Janeiro. “As transportadoras estão tendo custos elevadíssimos com gerenciamento de risco.” Mas no Estado do Rio ele diz que o problema “ficou insustentável” depois das Olimpíadas. “Lá, os custos com medidas de segurança no transporte de cargas chegam a ser oito vezes maiores que a média nacional.”
Marques considera o governo “sócio” dos bandidos, por uma razão bem simples: quando a carga é roubada, os produtos levados têm que ser comprados novamente e, portanto, o fisco recolhe tributos duas vezes. Ele defende a aprovação de uma lei que obrigue a devolução de todo o imposto incidente sobre uma carga que venha a ser roubada.
Pedro Maniscalco, diretor de operações da Jamef, explica que a empresa sabe quais são as regiões de maior risco de roubos de cargas e usa escoltas em seus veículos “sempre que necessário”. A empresa faz cerca de 50 mil coletas e entregas no Estado do Rio mensalmente.
Já o diretor comercial da Via Pajuçara, Altamir Cabral, diz que os assaltos a caminhões de carga no Rio de Janeiro fazem parte de suas preocupações há pelo menos 20 anos. “Mas desde 2014 percebemos uma mudança no perfil dos eventos. Eram de médio porte, envolvendo cargas específicas. Nestes três anos, passamos a ter uma grande quantidade de roubos de cargas com menor valor, espalhados por muitas regiões da cidade.”
Ele não lamenta apenas a elevação de custos de seu trabalho que essa situação representa. “O que mais nos preocupa, na verdade, é como garantir a segurança física e emocional das pessoas e o atendimento dos nossos clientes num cenário como esse.”
O ‘entreposto’ fica ali. Mas ninguém chega perto
Para o coronel Venâncio Moura, no Rio de Janeiro os traficantes perceberam que o roubo de cargas dá mais lucro que a venda de drogas. Aposentado da Polícia Militar, ex-diretor do Batalhão de Operações Especiais (Bope), hoje Moura é diretor de segurança do sindicato das empresas de transportes do Estado do Rio, o Sindicarga. “Há um entreposto de carga roubada no Complexo do Chapadão. É um ponto privilegiado, que está próximo da Via Dutra, da Washington Luís, da Avenida Brasil e da Via Light, que leva à Baixada Fluminense”, conta.
Mas se o coronel sabe que esse entreposto de carga roubada existe, e sabe onde fica, por que a polícia não vai lá, acaba com a bandalheira e prende todo o mundo? Segundo ele, a polícia não vai lá porque, para fazer uma coisa dessas, “precisaria realizar uma operação de grande porte, com grande número de policiais, e não está aparelhada para um esforço desse tamanho”.
Na verdade, acrescenta o coronel, os ladrões têm tanta liberdade para cometer seus crimes que não se importam com o sistema de rastreamento presente em quase todos os caminhões hoje em dia. “Eles sequer se dão ao trabalho de colocar jammer (para cortar o sinal dos equipamentos). Tanto o transportador como o embarcador sabem exatamente onde a carga está sendo descarregada, mas são impotentes diante da situação. A tranquilidade dos ladrões é tanta que alguns chegam a pedir a nota fiscal para o motorista, fotografam e mandam por whatsapp para que o chefe da quadrilha diga se a mercadoria interessa.”
Depois do caminhão descarregado, o produto do roubo é distribuído para uma “rede de ambulantes” que, segundo o coronel, foi criada para oferecer a mercadoria a preços de contrabando em ônibus, trens, no metrô e outros locais de grande aglomeração.
O problema também afeta os grandes varejistas e não apenas os transportadores de cargas, afirma Moura. “Os motoristas estão em pânico, não querem mais fazer entregas em alguns locais. Isso afeta o comércio. Os motoristas temem pela sua vida. E as seguradoras recusam-se a fazer seguro de determinadas cargas, como a carne”, atesta. Na visão dele, se nada for feito, logo algumas regiões do Rio de Janeiro terão graves problemas no abastecimento de alguns gêneros.
Moura diz que, em certas áreas do Rio, os transportadores só entram com escolta. Mas nem isso é garantia contra roubos: “Os guardas da escolta usam pistolas 38, enquanto os traficantes têm fuzis, que são muito mais potentes”.
Uma providência que o Sindicarga tomou para tentar colaborar com a polícia no combate aos roubos de cargas foi a criação do projeto Carga Segura. Por meio dele, está sendo arrecadado dinheiro dos associados para que a Polícia Militar mande consertar veículos blindados, que estão parados por falta de manutenção, facilitando ainda mais a ação dos assaltantes.