Neuri e Nelci são dois ex-caminhoneiros gaúchos. Um guarda boas lembranças das estradas e o outro, decepção. A história dos irmãos foi contada pela sobrinha, a estudante do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria, Tatiane Milani (foto), em trabalho de fim de curso.
A Carga Pesada abre esse espaço para registrar o relato emocionante da jovem. Boa leitura.
Ainda sou criança, só mudei de brinquedo!
Tatiane Milani
Pertencentes a categoria de trabalhadores que mais morrem no país, Neuri e Nelci, irmãos de sangue e de trabalho, têm suas vidas registradas nos tacógrafos de seus caminhões. Duas histórias na mesma família: uma paixão e uma decepção, é como suas histórias se resumem.
Nelci, abalado pela doença passa seus dias de casa para a clínica de hemodiálise; o outro, Neuri, passa o período comercial trabalhando em seu próprio negócio. Para um deles a paixão pelo caminhão ainda aparece nos sonhos, e para o outro, a lembrança o atormenta. Nelci, 63 anos e Neuri 56 anos, são irmãos que se visitam diariamente. Começaram na profissão de caminhoneiro ainda bem cedo, o mais velho com 14 anos fazendo fretes na cidade, e o mais novo a partir dos 18 anos.
Enquanto apurava as duas histórias tive surpresas. Pensei que os conhecia muito bem por serem meus tios e por ter um relacionamento bem estreito com os dois. Porém, meu tio Neuri, mais conhecido como tio Negro, me diz que não gosta nem de lembrar da época em que tinha caminhão, sendo que levou esta profissão por 18 anos. Já o outro, o tio Nene, com 44 anos de estrada, sonha até hoje com seu caminhão quando se recupera de sua doença e volta a dirigir pelas estradas. Preferi chamá-los assim pela proximidade que mantemos, e por não conseguir me desprender do hábito de chamá-los de tios.
Depois de remarcar o primeiro encontro com tio Nene, subo os 56 degraus de escada que levam até o seu apartamento. Chego até a porta que está entreaberta aguardando minha entrada; é a primeira visita para falarmos de sua trajetória pelas estradas desse Brasil. Chego um pouco atrasada, ele e sua esposa, a tia Irma, me esperam à mesa para jantar. É noite de sexta-feira, dia de hemodiálise, o que talvez, possa dificultar um pouco a entrevista. Nos dias em que precisa passar por esse procedimento, meu tio fica um pouco debilitado, cansado e com voz fraca. Sento-me para jantar e me entristeço pela quantidade de remédios que o esperam para a refeição.
Apesar de ter começado a adoecer ainda quando viajava, carrega boas lembranças de suas viagens. Lembro do dia em que mencionei que queria contar sua história de caminhoneiro, ele com os olhos cheios de lágrimas, disse que se soubesse ajudaria no que fosse preciso. E o que pensei que dali sairiam poucas histórias, consegui atravessar o Brasil ouvindo ele falar. Já o tio Negro, se mostrou um pouco defensivo quando o procurei para conversarmos. Sua reação foi dizer, de forma envergonhada, que não saberia contar muita coisa.
Depois de terminarmos de jantar, ele vai para a sala e se deita no sofá de frente para a televisão, no canal que passava o seriado Chaves. Por um instante pensei que aquele pode não ter sido o melhor momento para a minha entrevista, ele estava bem abatido e com a voz cansada. Pela manhã havia feito hemodiálise, e por conta de algumas complicações dos últimos dias, sua voz quase não era audível. Porém, quando percebeu que eu esperava sua reação, sentou-se no sofá, com sinais de cansaço, mas mencionou que eu perguntasse o que precisava.
Seu apartamento é de pouca mobília, mas bem espaçoso. Em instantes, a tia vem da cozinha e senta-se na poltrona ao lado do sofá dele e presta atenção na conversa. Mais tarde conta da experiência das vezes que o acompanhou.
Apesar de começarem a vida profissional com dificuldade, os dois irmãos sempre trabalharam de forma autônoma. Dados parciais do Registro Nacional do Transportados Rodoviários de Carga revelam que 84% dos transportadores são autônomos e detêm mais da metade da frota brasileira, que chega aos 55%. Esse número está nas mãos de aproximadamente, 553 mil autônomos. Esse é um número do ano passado (2014) do RNTRC.
Nelci, iniciou sua carreira como caminhoneiro autônomo fazendo fretes em sociedade com seu irmão mais velho, o tio Ildo. Depois de um tempo comprou seu próprio caminhão e começou a puxar numa lavoura de arroz em Sidrolândia-MS, chegando a ficar até três meses por lá.
Questionei meu tio do porquê ter escolhido essa profissão que oferece tantos riscos. Ele diz que começou com isso porque gostava, e nesse momento sorri esfregando os dedos indicando dinheiro. Mas sonhava em um dia ter uma terra onde pudesse passar sua vida, porque sempre quis permanecer no interior. E como não tinha dinheiro para comprar, o caminhão era mais barato de financiar, e com o dinheiro que conseguisse um dia, poderia ter sua colônia de terra. Além do financiamento mais fácil para fazer a compra de um caminhão, ele dava a chance de ter dinheiro no bolso toda semana. Cada frete que fazia entrava um pouco.
– “Eu gostava muito de terra na época, só que não podia comprar. Se eu pudesse comprar meia colônia, pra mim ‘tava’ bom”, diz meu tio relembrando os velhos tempos.
Seu primeiro caminhão foi um Truck 1113, cabine pequena, quase sem espaço para dormir. Depois de 14 anos trabalhando com esse modelo de caminhão comprou a primeira carreta em 1987, mais espaçosa e com maior potência para as cargas. Apesar das dificuldades e dos problemas de saúde, guarda boas lembranças.
Neuri não recorda muitas coisas boas, se difere do irmão ainda no início pelo motivo que o levou a escolher essa vida. Na primeira visita percebi uma timidez, a qual não esperava. Pelo tanto que o conheço pensei que teria gosto em falar dessas coisas, mas não se mostrou muito à vontade. Gesticulava pouco, não descreveu muitos detalhes a respeito do que eu perguntava. Senti que isso aconteceu porque falou de sua profissão com uma angustia, parecendo até que não gostava nem de lembrar do que passou nesses 18 anos afora.
Ao fazer a primeira visita ao tio Negro me deparo com um quadro com a imagem de um caminhão americano na parede do seu escritório. Hoje, depois das decepções das estradas, possui uma revenda de carros a “Milani Automóveis”, que leva seu sobrenome.
No porão da casa, onde realizamos as entrevistas, Neuri guarda suas relíquias: um Corcel ano 76, que comprou para restaurar, e perto dali um caixa linda que guarda uma de suas paixões: a gaita. Na primeira vez que o visitei para começar as entrevistas avistei aquela caixa preta com detalhes em prata e resolvi perguntar o que ela escondia em toda aquela beleza. Antes mesmo dele me responder já estava com a gaita nos braços, com um sorriso de orelha a orelha me dizendo: – “Você viu a minha gaita? Dei um Corcel por ela”, e começou a tocar, apenas arranhando algumas notas, pois nunca se encorajou para fazer aulas. Confesso que poucos vezes o vi feliz daquela forma.
Enquanto falava com o tio sobre suas primeiras viagens, sua esposa, a tia Lourdes, terminava de limpar a cozinha e em seguida juntou-se a nós ajudando o tio a contar de sua trajetória. Ela falou, principalmente, da época em que tinham que levar a filha mais velha para as viagens, que na época era bebê.
Nos primeiros tempos tio Negro fazia fretes por Porto Alegre-RS, depois passou a ir lá para cima, em Cuiabá, Sinop no Mato Grosso. No período em que viajou sempre teve caminhão Truck, nunca dirigiu carreta. Só teve contato com elas quando comprou para colocar empregado para fazer os fretes.
Tio Negro relembra que sofreu muito enquanto estava na profissão, mas que escolheu isso porque na época não tinha vocação para outros serviços. Seu pai tinha olaria e trabalhava na roça, mas diz que não sabia fazer essas coisas, então preferiu seguir o rumo da estrada. Quando fala dessa maneira até diz que não era de todo ruim esse trabalho, porque o caminhão era um turismo, você estava sempre passeando. Mas hoje não faria de novo, porque diz ser ruim agora… fala das péssimas estradas, dos roubos, e os negócios hoje são mais difíceis. – “Na época não era ruim, achava carga aonde queria. Hoje não tem mais tantas assim, porque o frete está muito disputado”.
De repente quebra o clima sério e sai com uma piada de caminhoneiro, dizendo que para ele essa profissão é só sofrimento, e utiliza um ditado: “Caminhoneiro é que nem cachorro, porque atende por assobio, mora na casinha de lata e mija no pneu”, e solta uma gargalhada.
Mas ainda com revolta afirma que trabalhar com caminhão não dá mais nada hoje em dia, e que quando cansou de viajar, comprou carreta e contratou empregados para fazer as viagens. Esse período que durou dez anos foi regado de muitos prejuízos e incômodos.
Neuri fala revoltado:
– “Se fosse hoje só voltaria a viajar se não soubesse fazer mais nada, o que é muito difícil. Nem compraria caminhão de novo”.
Uma de suas histórias tristes é que perdeu o seu caminhão. Havia financiado, mas tinha uma dívida em cima do veículo. Então a justiça recolheu. Teve de financiar o caminhão do irmão para poder pagar a dívida, e por isso teve de trabalhar duro por dois anos indo apenas quatro vezes para casa. Nesse período chegou a comer comida estragada, e a passar dias sem comer também.
O trajeto desses dois anos era de 800 quilômetros só de estrada de chão. Fazia uma viagem por semana. Nessa hora a esposa comenta que às vezes não tinha nem dinheiro para comprar comida, porque ia tudo na parcela do caminhão. Fazia um carreteiro e comia a semana inteira a mesma coisa, até terminar.
Naquele longo pedaço de chão não tinha nem aonde comprar comida, então passava com o que tinha. A água que tomava ele pegava no rio. Tio Negro fala com pesar: – Eu andava, às vezes, 150 quilômetros e não tinha nem morador. Só chão. Deus, era de chorar.
O que conseguia, era quando ia para a cidade e lá comprava um pouco de carne e guardava na caixa do caminhão. Lá ele tinha um pouco de arroz, charque, salame, queijo. Comia aquilo no café, almoço e na janta. Ele conta que o irmão Nelci chegou a fazer umas viagens naquele lugar, mas poucas vezes, porque fazia a safra no Mato Grosso. Ele precisou ficar aquele tempo de dois anos porque senão não tinha como pagar o caminhão.
Neuri revela que chegou a passar fome também. Teve uma certa vez que ficou três dias sem comer, porque não tinha dinheiro para comprar comida. Diz que passou de tudo nessas estradas. Para dormir encostava na beira da estrada, só tirava a cabina da estrada e dormia lá, no meio do mato, porque não tinha aonde parar. Mas fala também que na época não tinha perigo como hoje. Onde parava dormia com as portas do caminhão abertas. Ele compara que esse trajeto de 800 quilômetros era como daqui a Porto Alegre, mas só em estrada de chão. Ia vazio e voltava carregado.
Apesar das dificuldades, tio Nene acabou também por se conformar com aquela vida. Como ele disse, já estava na lida, a profissão era aquela, ia fazer o que? Depois passou a gostar, estava sempre indo e voltando. E tinha sempre um dinheiro no bolso, essa era a vantagem. E como compara, se fosse na roça a coisa não é assim tão fácil para ver dinheiro. Ele comenta: – “Eu gostava porque nunca ficava sem dinheiro”.
Uma das dificuldades que Nelci apontou foi a de ter de ficar muitos dias fora, especialmente, no Mato Grosso. Lá ele diz que é muito poeirento, então sujava muita roupa. E quando as limpas acabavam da mala, precisava mandar para lavar.
Os dois tios chegaram a viajar juntos em certo tempo, mas cada um com um caminhão com fretes para o mesmo lugar. Mas ao contrário do outro, tio Nene afirma que ficar sem comer quase não ficava, pois quando não tinha restaurante por perto e estavam em dois faziam comida. Porém, algumas vezes não tinha com o que fazer. Certa vez, foram numa fazenda descarregar calcário e iriam carregar arroz para voltar e descarregar em outro lugar. A comida já tinha acabado, e precisavam de algo para comer, e como havia muitos caminhões na fila para carregar foram até um morador próximo dali e compraram uma galinha para que pudessem fazer uma macarronada.
A tia Lourdes, esposa do tio Negro contou das vezes que viajava junto para não deixar ele sozinho, e nesse tempo levou várias vezes a Daiane, a filha mais velha. Mas, segundo o tio, os tempos já tinham mudado, não havia tanta necessidade como antes.
Eles viajaram com ela até começar a ir na escola. Às vezes ficava com a madrinha, que é a tia Irma, esposa do tio Nene. São dois irmãos casados com duas irmãs, e por conta disso também a proximidade das famílias. Quando ainda bebê chegou a viajar duas semanas com os pais. Mas o problema era que chorava muito, então era um tanto desgastante para ele que tinha que dirigir por horas. E o problema começava quando paravam em algum lugar para dormir e ela começava a chorar, então precisavam andar até que ela pegasse no sono. Ela estranhava a estrada, e muitas vezes meu tio precisava andar por horas para que ela se acalmasse.
Mas o pior de tudo era tomar banho, porque os postos não ofereciam boas condições para as mulheres dos caminhoneiros como hoje. Na época, só tinha água gelada para as mulheres, e quando muito tinha banheiro para elas. Então tia Lourdes dava banho na filha pequena no banheiro masculino, e colocava o tio para cuidar a porta. Sem contar que o banho era muito rápido. Já o filho mais novo, o Guilherme, viajou com o tio Nene, mas já era mais grande. Fez uma viagem com ele e a tia Irma para mais perto.
Da mesma forma, tia Irma conta de suas experiências nas três vezes que viajou com o Tio Nene. Ele, entes de tudo rindo falou: – “Ela freava mais que eu de tanto medo”.
A viagem que mais tiveram medo foi no Paraná, foi a sua primeira viagem junto com o tio, e aquela que levaram o Guilherme também. O planejado era vim direto para casa no mesmo dia, mas o Guilherme quis posar na estrada. Então pararam em um lugar que dava medo só de olhar. Quando foram tomar banho o chuveiro estava circuitando; quando compraram comida não dava coragem de comer. Nesse lugar ficaram só uma noite, no outro dia de manhã saíram para descarregar.
O pesadelo começou quando foram dormir porque só falaram coisas ruis a respeito: que era um lugar perigoso, com assalto, etc. Então lá era um lugar no meio do nada. Tinha apenas o armazém onde iriam carregar, e um boteco, com gente que dava medo. Ela colocou o guri no chuveiro e ficou na porta, mas como disse, foi só tirar a poeira. Tinha o armazém, mas não tinha pátio, então tiveram que deixar o caminhão do lado de fora, sem poder descer. E a preocupação dela era o Guilherme que tinha em torno de nove anos junto, porque comer não dava, e nem sair do caminhão. Tia Irma passou a noite toda sentada, sem dormir de medo que acontecesse alguma coisa.
Outra viagem que passaram medo foi quando o tio carregou para Fátima do Sul- MS, e depois foi carregar na divisa do Paraguai. Era um sábado, de tardezinha já escurecendo eles carregaram e tinham que subir, e era do lado do Paraguai, lugar que os outros diziam que tinha ladrão. Quando chegaram ninguém sabia aonde era a firma. Logo mais chegou um conhecido de Ijuí-RS com dois caminhões, e encostou todos eles em fila para que ninguém pudesse roubar. E passaram a noite ali mesmo, há 10 metros de uma favela. A tia Irma passou mal a noite toda. Ela diz: – “Nossa, passei tão mal, acho que foi de medo ali naquela favela. Era um buraco. Pensava se acontecesse alguma coisa só com nós dois lá. Mas quando chegou a noite tudo se aquietou e não se via mais ninguém na rua. Ficaram lá e não aconteceu nada”.
Nessa vida de aventuras, tio Nene conta de sua viagem mais longa, que foi ir até Rondônia, pertinho de Rio Branco no Acre. Passou por Tocantins, Bahia. Mas diz que essa viagem demorou em torno de 30 dias. As cargas eram arranjadas por um agenciador. Como ele conhecia o caminhoneiro sempre que aparecia uma carga boa chamava alguém. Então ele ligava e dizia que tinha viagem para determinado lugar, então quem ia levar a carga pagava uma quantia para o tal do agenciador e ia. Caso não quisesse ele chamava outro motorista e despachava a mercaria. Essa para perto do Acre era uma carga de flutuante, é o material utilizado para fazer balsa de garimpo para catar ouro no rio.
O mais interessante das conversas com o tio Nene era que sempre que perguntava de alguma viagem marcada por determinado fator, ele sempre contava a história toda. Desde o que carregava, para que aquilo servia, e tudo mais. Nessa ele me disse que esses flutuantes eram para uma balsa onde os garimpeiros construíam uma casa em cima para então catar o ouro no rio. Disse também que uma ou outra vez carregava lâmina para fazer móveis. E esse tipo de carga era leviana, então sempre valia a pena por não desgastar tanto o caminhão.
Depois de um tempo passou a fazer fretes só para uma empresa de Panambi-RS, a Kepler Weber, uma fábrica produtora de secador de semente. Ficou anos puxando apenas para essa empresa, fazendo uma ou duas cargas por mês, dependendo a distância que ia. Meu tio diz que a maioria das cargas ia para longe, como Goiás, na divisa do Pará, no norte do Mato Grosso.
Em outra visita com o tio Negro ele me conta dos caminhões que teve. Falou que o primeiro caminhão era um F600 a gasolina, é dos modelos mais velhos. Era do seu pai quando começaram a vida trabalhando na olaria. – “Depois o primeiro caminhão que a gente comprou, eu e o meu irmão, foi um Mercedes, um Truck 1113”. Quando pedi a diferença de caminhão toco e Truck, me disse que o Truck é dois eixos atrás, e fez menção que era como o que o meu pai tinha.
Os perigos da estrada
Os acidentes em estradas, quase sempre envolvem caminhões. As causas são variadas, mas as principais indicadas pela Polícia Rodoviária são a falta de boas noites de sono e de manutenção dos veículos. E ainda estão nessa lista outras causas, como por exemplo as jornadas de trabalhos irregulares, sem escalas com horários diferenciados, sem período de descanso. E a vida que os caminhoneiros levam longe das suas famílias, o desconforto das viagens, os prazos apertados para despacho das cargas são causas, que muitas vezes, levam a morte.
Com meus tios não foi diferente nas histórias que me contaram. Quando perguntei ao tio Negro se tinha passado por alguma situação de risco, ele me diz: – “Quer aventura eu te conto, você escreve um livro aí”.
Ele conta que que ainda no tempo da olaria ele viajava para buscar tijolo no Morro da Fumaça-SC uma vez por semana. Então carregava madeira para vender lá. E num certo dia convidou um dos irmãos que também era caminhoneiro para ir junto, porque queria fazer duas na semana. Mas conta que o irmão pegava no volante e dormia. E em uma dessas vezes disse para ele sair do volante que ele ia assumir, mas já tinha dirigido a noite toda. Mas tocou. Quando clareou o dia lá perto de Porto Alegre, ficou olhando um homem em cima de um guincho batido e dirigindo. E nessa hora sai um “boca de fronha” do posto (que eu não sei o que ele quis dizer com isso), e pensou que o cara iria para o acostamento, e ao invés disso ele entrou na pista. Meu tio diz que estava em uns 90 quilômetros por hora. Quando viu estava na traseira desse caminhão, ia bater.
Enquanto me contava gesticulava bastante, mostrando os movimentos do caminhão. Até que disse: – “Daí naquilo tu tem que pensar na hora, então eu só tirei aqui, e quando eu vi que deu eu voltei”. Vinha um conhecido na frente e não tinha como sair sem invadir a outra pista, e pensou que ia bater porque tinha cordão dos dois lados. E isso era na frente do pátio de um posto, e logo a diante tinha um trevo. Então ele tirou o caminhão para o lado, e disse que se não desse ele ia puxar para o pátio do posto, mas tinha que pular um cordão alto. Aí ele disse que sabia o que ia acontecer, então puxou de volta e o caminhão pendeu. Diz meu tio que só não tombou no meio da estrada porque não estourou as cordas. E ainda xingou o irmão que se assustou na carona, porque ele não ajudava a dirigir. Mas diz que não bateu por sorte.
Outra história que ele conta foi de uma vez que fez três viagens de tora. Eram 480 km, sendo só 220 de asfalto, o resto era chão. E ele puxava dia e noite sem parar. E ainda na primeira viagem estourou dois pneus. Essas cargas eram para Pontes Lacerda no Mato Grosso. Diz ele que em seis dias dormiu mais ou menos 10 horas. Já não aguentava mais andar, e quando sentia muito sono parava perto de um posto, independente da hora que fosse e tomava um banho gelado e se mandava. Quando sentia fome só comia lanche e tomava café para não dar mais sono. Quando terminou o frete já era sábado de manhã. Ele conta: – “Sábado de manhã descarreguei em Cuiabá, e fui para baixo de um pé de manga, um pezão… e daí já tinha almoçado, tomado banho. E falei para o guarda: segunda eu acerto os fretes, hoje nem vou acertar porque não vou sair daqui. E ainda disse para ele não me acordar, que me deixasse dormir porque estava a semana inteira sem dormir direito. Eu acordei na segunda-feira. De sábado eu acordei segunda-feira, dentro do caminhão de porta aberta, bem pertinho da guarita do guarda. Diz que ele vinha lá e olhava, estava respirando, está vivo ainda”.
Tinha que se submeter a essas coisas porque as contas estavam atrasadas em casa, e ainda tinha estourado a caixa do caminhão. E na época a prestação era alta, porque era ainda daquele caminhão que tinha perdido. Então precisava trabalhar dobrado para conseguir dar a volta.
Os sustos que o tio Nene levou também não foram poucos, contabilizando as vezes que cochilou no volante, e que passou mal. Certa vez estava indo por São Paulo para ir ao Mato Grosso e ficou bem ruim lá. Quando parou para dormir acordou na madrugada se sentindo mal. Tinha uma coceira pelo corpo e não passava bem. Então preocupado levantou e foi tomar um banho. Pediu ao cara do posto quantos quilômetros tinha dali até Nova Alvorada, e ele disse que ainda tinha 90 quilômetros de estrada. E então ficou sem saber se seguia para encontrar recurso, mas ao mesmo tempo tinha medo que acontecesse alguma coisa. E no posto falaram que ali onde estava não tinha nada por perto. Então esperou um pouco, caminhou pelo pátio até passar, e voltou a dormir. No outro dia seguiu viagem.
Mas mal mesmo ele ficou quando teve ameaça de derrame em 1994. Naquela vez ficou internado uma semana no hospital em Campo Grande-MS.
Nesse dia estava indo para a lavoura e não se sentiu bem. Antes de chegar na roça viu que tinha um caminhão de silo atrás, e não queria deixar ele passar porque tinha muita poeira. Então acelerou, e tinha uma ponte para passar, uma ponte pequena. Ele diz que não viu a ponte, só viu quando encostou na lavoura. Quando chegou foi arrumar a carroceira e naquilo caiu lá de cima. Mas isso tudo sem lembrar de nada. Logo adiante tinha um tal de Salvador plantando, e quando viu ele caído foi lá para ajudar. Porém, quando ele percebeu que o Nelci estava levantando, voltou a plantar.
Nessa queda se machucou todo sem perceber de tão mal que estava. Quando o filho do patrão chegou na lavoura chamou a atenção dele porque o caminhão estava estacionado do lado errado. Mas meu tio disse que ia sair por aquele lado. E o rapaz sabendo que era o caminho mais longo, chamou seu pai, porque sabia que ele tomava remédio, e alguma coisa podia não estar certa. Então o patrão chegou lá e o levou para sua casa, e em seguida chamou um médico. A pressão estava em 29 e o médico mandou que internassem ele. Foi para o hospital de Sidrolândia, e no outro dia de manhã transferiram para Campo Grande. Só lá contaram que ele tinha caído de cima do caminhão, e foi ali que viu que tinha se machucado muito.
Mas naquela ocasião o irmão mais velho, o Ildo, estava lá para cima também. E como na época não tinha telefone, a ligação passou por várias pessoas até que chegou na sua namorada, que na época ele ainda não tinha casado com a tia Irma. Então o médico quis falar com ela para saber que remédios ele tomava, e explicou que o que tinha acontecido foi uma ameaça de derrame. Depois que ficou uma semana lá, pegou o ônibus para Sidrolândia e ficou uns dias parado na casa de uma tia até poder voltar a trabalhar.
E foi com esse susto que os médicos o alertaram de um problema que tinha nos rins. Contudo, nunca comentou em casa desse problema por teimosia para não ir ao médico. E foi por conta de deixar o problema sem solução que depois teve complicações e não pôde mais dirigir.
Outra vez o tio Negro passou medo lá pelas bandas de Sinop. Estava ele, um dos irmãos e mais dois catarinenses. Era bem na época de chuvas, e um caminho de 370 quilômetros de estrada de chão. Faziam o trajeto de Sinop a Cuiabá, e ele ia a Juara, que dava 600 quilômetros só de chão. Ainda relembra: – “Mas hoje, por dinheiro nenhum eu faria isso… iria carpir na roça”.
Naquele trecho os militares fechavam para caminhão Truck não passar, porque com a chuva dava problemas, só podiam os caminhões mais pequenos. E chegaram lá e não deixaram eles passar, teria que fazer toda uma volta para conseguir chegar até onde precisavam. Foram até o posto Gima e pediram se tinha como furar essa barreira. Mas não tinha como, então deveriam voltar em uma estrada velha, mas que tinha uma ponte que fazia 10 anos que ninguém passava por ela. Era uma ponte velha de madeira, e em baixo corria a água do rio. E por dentro dessa água os agricultores ali de perto passavam com o trator, mas por cima da ponte era arriscado.
Chegaram na ponte, e viram uma “bodega” ali perto e foram falar com o pessoal. Alertaram para o perigo, pois fazia 10 anos que ninguém se atrevera a passar nela. Adiante nem estrada tinha mais, tinha só mato, e até uma árvore grossa já. Do outro lado tinha a estrada que saia no lugar que eles precisavam, mas o problema era a ponte. Ali perto tinha um trator trabalhando e eles pediram para o motorista passar em cima da capoeira do outro lado e derrubar aquela árvore, que eles iriam passar com os caminhões.
Foram olhar a ponte; foram em baixo dela, chacoalharam, e acharam que ainda estava forte. Então, o tio Negro todo corajoso, vai lá e diz que ele ia passar e os outros que ficassem em baixo para ver se ela fazia barulho. Foi lá, colocou os pneus em cima e freou bem forte. Não aconteceu nada, e resolveu se largar. Diz ele que só tinha os paus, travessas eram poucas. Ele ri: – “Aí, aventureiro né, calcule o que nós fazia”. Aí passou o caminhão dele, e os outros passaram também. Foram lá, carregaram e vieram embora.
Outro acidente que quase aconteceu foi com o tio Nene quando ainda tinha o primeiro caminhão. Estava em Rondonópolis-MT, e naquele trecho estavam colocando uma brita para fazer reparos no asfalto, e ia uma caminhoneta Rural em sua frente. Diz ele que era um “descidão” e nessa hora largou o caminhão, que é o que eles chamam quando colocam em ponto morto para o caminhão andar mais. E quando o caminhão se largou a caminhoneta ficou perto demais, pois não estava indo tão rápido. Mas nessa hora já tinha terminado o trecho que tinha as pedrinhas, e então viu o perigo. Ele contou: -“Assim eu só desviei elas (as britas), mas se ajuntava ela ia levar … ia a mais de 100 por hora”. Estava a caminho da fazenda para buscar uma carga de arroz, mas não pensava que iria alcançar a Rural. Ele relembra: -“Aquilo eu não esqueço até hoje”.
O fim das estradas…
Das lembranças que ficam ainda hoje guardadas, o tio Negro guarda aquele quadro de caminhão no porão da casa. Tem marcado na lembrança que sua trajetória de caminhoneiro não foi a melhor experiência da sua vida, mas foi a partir daí que hoje saem todas as histórias que conta. Também me recordo de quando, no início das entrevistas quis juntar os dois irmãos para trocarem experiências juntos. Mas mais uma vez, por conta do tio Nene estar envolvido com consultas médicas não foi possível esse encontro.
Sobre o motivo que os dois pararam de viajar… o tio Negro diz que sofreu tanto, teve tanto prejuízo que não quis mais saber dessa profissão, e resolveu investir no negócio de carros. Como ele me disse, sempre gostou do brique, e já lidava com isso ainda quando tinha empregados nas carretas. E foi só quando isso passou a dar certo que diz ter visto dinheiro mesmo para poder viver um pouco melhor.
Quando pergunto a ele sobre qual foi o melhor ano do tempo em que viajava, fala bem receoso, que nunca foi bom. Perdeu o caminhão, teve outras complicações, enfim, diz ter sido azarado. Hoje também já não anda tão bem. Nos últimos anos lutou contra uma doença braba, luta com o diabetes todos e dias e passa por rigorosas dietas. E de uns meses para cá, vem enfrentando problemas com as pernas, por causa de uma trombose.
O tio Nene, esse chega a apertar o peito em ver que não pode mais fazer o que sempre amou: ser caminhoneiro. Tudo isso por não ter se cuidado dos problemas que apareceram na saúde ainda em tempo. Hoje precisa esperar na fila do transplante um rim de um doador, e suportar as manhãs frias quando sai às 6 horas para a sessão de hemodiálise.
Além disso tem muitas outras complicações de saúde. Como o irmão, tem diabetes, e uma hora ou outra sempre aparece mais alguma coisa para atrapalhar. Mas leva sua vida mimado pela tia Irma, que sendo enfermeira o trata como um bebê.
Tio Nene ainda tem um TV de 7 polegadas que comprou quando já estava parando de viajar. Está na estante, e mostra para todos que vão lhe visitar que aquela é a lembrança dos seus tempos bons. Diz que parou com essa vida por conta da idade, mas que se não fosse os problemas de saúde que apareceram estava na estrada até hoje. Para relembrar dos seus velhos tempos, passa horas parado em um posto na BR vendo a chegada e saída dos colegas motoristas.
A vida não tem sido fácil para os dois, mas ainda conseguem ser os exemplos da família, que nunca mediram esforços para ajudar os irmãos e a quem precisasse. Vai ver essa é a herança das estradas.
Enquanto jornalista posso dizer que sinto alegria ao poder registar um pedacinho apenas, de histórias que ficarão marcadas para sempre em minha vida. Não só ouvindo esses dois tios, mas convivendo com suas histórias desde criança. E posso dizer que o companheirismo desses dois irmãos vou levar para a minha história, pois mesmo nos piores momentos um sempre esteve ao lado do outro como nos velhos tempos de estrada.
E encerro esta reportagem com uma frase de para-choque: “Mais vale um exemplo do que mil palavras”.