O governo se apressou para atender algumas reivindicações dos caminhoneiros depois que eles interromperam o tráfego em estradas em fevereiro. Muita coisa ainda é promessa. E a tabela mínima obrigatória de frete, que era a principal, não veio
Nelson Bortolin
Assustado com a greve dos caminhoneiros de fevereiro/março, o governo federal não só sancionou a Lei 13.103, como editou uma enxurrada de portarias, decretos e resoluções que a complementam. Tudo para acalmar os ânimos da categoria. A Lei 13.103, publicada dia 3 de março, substitui a 12.619 – a Lei do Descanso. Uma das reivindicações dos autônomos era poder trabalhar mais. O limite anterior era de 12 horas por dia. Agora é de 13 horas por dia.
Na verdade, a Lei 13.103 foi construída pela bancada do agronegócio na Câmara dos Deputados. Com os motoristas mais tempo ao volante – os empregados poderão fazer até 12 horas por dia, e não 10, como antes – os deputados do agronegócio legislam em causa própria, visando segurar o preço do frete dos produtos agrícolas.
Junto com a liberação para os motoristas trabalharem mais, os deputados incluíram na lei, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, uma série de artifícios para agradar aos transportadores, como isenção de pedágio por eixo suspenso, quando o caminhão está vazio, e o perdão das multas aplicadas por infrações à Lei 12.619. O governo também aceitou o refinanciar caminhões comprados até o fim de 2014 com recursos do BNDES.
Só não foi aceita a maior solicitação dos autônomos: uma tabela mínima de frete que os embarcadores sejam obrigados a cumprir.
Os custos do transporte aumentaram muito devido à alta da inflação e aos reajustes do diesel, e o valor dos fretes, principalmente os de grãos, até caiu no início deste ano, em vez de subir junto, levando muitos a uma situação de desespero.
Segundo o Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (IMEA), o valor da tonelada transportada de Rondonópolis a Paranaguá em 5 de janeiro de 2015 havia caído 16,1% em relação a 6 de janeiro de 2014, de R$ 155 para R$ 130. Principalmente devido ao atraso na colheita, os fretes de grãos continuaram muito baixos até março, e só foram melhorar em abril.
Com a greve dos caminhoneiros em fevereiro, o governo chegou a montar uma comissão para estudar uma tabela mínima de fretes, e essa comissão fez uma proposta. Os valores por tonelada vão de R$ 28,26 a R$ 777,64, dependendo da extensão da viagem. Mas o governo afirmou que tabelar preço é inconstitucional, que a tabela não pode ser obrigatória. Mesmo assim, no dia 24 de abril, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicou a resolução 4.681, segundo a qual a proposta de tabela referencial será discutida em audiências públicas, ainda sem data marcada. De acordo com a agência, as audiências serão em Brasília e São Paulo. Insatisfeitos com esse final da história, em abril alguns caminhoneiros tentaram iniciar outra greve, mas desistiram.
O presidente do Sindicato dos Autônomos de São Paulo (Sindicam-SP), Norival de Almeida Silva, que participou da comissão da tabela de frete, diz que o governo pretende intermediar as relações entre transportadores e embarcadores para que valores mínimos sejam obedecidos. Para isso, será criado um comitê permanente com representantes de todas as partes.
O Sindicam-SP vem participando das negociações com o governo, mas não apoiou as paralisações. Já o caminhoneiro gaúcho Fábio Luís Roque, de Santa Rosa, foi um dos líderes. Ele considera um absurdo o governo dizer que a tabela mínima é inconstitucional, por causa dos seguintes fatos, acontecidos com ele mesmo. “Peguei uma carga de cebola para levar até Contagem (MG). Quando cheguei ao posto fiscal, o agente riu na minha cara. Ele não acreditou que o valor do frete na documentação fosse verdadeiro. E me mostrou uma tabela que eles usam para calcular imposto, com valor de frete de acordo com a quilometragem do trajeto. Quer dizer: pra pagar imposto sobre o frete pode ter tabela mínima, mas para remunerar o caminhoneiro é inconstitucional.” Ele contou essa história numa reunião com o ministro Miguel Rossetto, da Secretaria-Geral da Presidência.
A Carga Pesada consultou o advogado Roque de Siqueira Gomes, do Instituto Pimenta Bueno – Associação Brasileira dos Constitucionalistas, para saber se ele acha que a imposição de uma tabela de fretes é inconstitucional. Ele disse: “A interferência do Estado pode existir na criação de uma tabela referencial, mas a imposição de valores mínimos afronta o preceito do liberalismo econômico, sendo essa ingerência governamental típica de um Estado Social (interventor na economia), inadmissível num Estado Democrático de Direito”. Resumindo: ele acha inconstitucional.
As novas legislações que envolvem a atividade de transporte.
Eixo suspenso sem pedágio: efeito será pequeno
Começou a vigorar dia 17 de abril o decreto 8.433, que regulamentou a isenção de pedágio nos eixos suspensos quando o caminhão estiver vazio. A medida pode representar mais de 30% de redução no custo do pedágio em viagens sem carga. Por exemplo: uma combinação de cavalo-trator mais carreta de três eixos, sem carga, gastava R$ 312 no trecho Londrina-Paranaguá (PR) até 16 de abril. Com a mudança, passou a gastar R$ 207,60 (-33,4%).
Para garantir que os veículos estejam vazios, é preciso verificar nas praças de pedágio. No olho, essa fiscalização é inviável porque provocaria grandes filas. O decreto diz que o Contran tem até 16 de setembro para regulamentar o “uso de equipamentos para verificar se o veículo se encontra vazio”. Até lá, pressupõe-se que todos que passarem pelas praças de pedágios com eixos suspensos estão sem carga.
O Estado de São Paulo diz que não vai cumprir o decreto. A Agência Estadual de Transporte (Artesp) alega que a lei é “juridicamente inaplicável”.
A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovia (ABCR) já disse que vai querer um aumento das tarifas por conta da isenção dos eixos suspensos, para manter o “equilíbrio financeiro” dos contratos.
Transportadores entrevistados pela Carga Pesada não se empolgaram com a novidade. “A maioria das operações de transporte tem frete de retorno. Poucos segmentos vão se beneficiar, como o transporte de combustíveis”, declara Luiz Podzwato, superintendente do Sindicato das Empresas de Transporte do Paraná (Setcepar).
Ítalo Lonni Junior, da empresa de transporte e logística Compager, de Londrina, diz que não ganhará com a isenção. Ele transporta grãos e açúcar para Paranaguá em 60 bicaçambas (veículo com sete eixos). “Voltamos sempre carregados com fertilizante.” Ele gastou R$ 218 mil com pedágio no mês passado.
O presidente do Sindicam de Londrina, Carlos Roberto Delarosa, afirma: “Numa crise destas, todo caminhoneiro procura frete de volta”. Ele calcula que apenas 10% das viagens de caminhões sejam feitas sem carga.
Novos limites para o excesso de peso
O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) baixou a deliberação 142, dia 17 de abril, e a resolução 526, dia 29 de abril. Ambas tratam de controle de peso de veículos de carga. A tolerância é de 5% para o peso bruto total combinado (PBTC) e de 10% para o eixo.
O engenheiro especializado em transporte Rubens Penteado de Melo diz que a lei ficou mais simples, porque a anterior previa que, caso fosse excedido o limite do PBTC, o excesso por eixo não poderia ser superior a 7,5%. “Agora não tem mais isso. É simplesmente 5% e 10%”, afirma.
O veículo multado poderá prosseguir viagem, sem remanejamento ou transbordo, desde que os excessos aferidos em cada eixo ou conjunto de eixos sejam inferiores a 12,5% do menor valor entre os pesos e capacidades máximos estabelecidos pelo Contran e os pesos e capacidades indicados pelo fabricante ou importador. Em seu blog (www.portalntc.org.br/blogdoneuto), o diretor técnico da NTC&Logística, Neuto Gonçalves dos Reis, lembra que agora ficou claro que a tolerância para fins de remanejamento ou transbordo não será cumulativa com as demais tolerâncias.
A resolução e a deliberação também regulamentam a autorização para as carretas boiadeiras (romeu e julieta), previstas na Lei 13.103. Segundo Melo, antes elas não podiam ter mais de 19,8 metros de comprimento. Agora podem ter 25 metros, e rodar em qualquer horário.
A Lei 13.103 reforça que o embarcador indenizará o transportador por todos os prejuízos decorrentes de infração por transporte de carga com excesso de peso em desacordo com a nota fiscal, inclusive as despesas com transbordo de carga.
A promessa dos pontos de parada
O Ministério do Trabalho publicou a portaria nº 510, sobre as condições de segurança, sanitárias e de conforto nos pontos de parada dos motoristas profissionais. Têm que ter ambiente de refeições, fornecer água potável, banheiros separados para homem e mulher, chuveiro com água fria e quente etc.
No dia 10 de abril, em entrevista para a Agência Brasil, o diretor-geral da ANTT, Jorge Luiz Bastos, disse que, no máximo daqui a um ano, todas as rodovias federais concedidas à iniciativa privada terão pontos de parada para descanso dos caminhoneiros, conforme prevê a Lei 13.103. Mesmo que essa medida tenha como consequência o aumento do preço dos pedágios pelo Brasil.
Em outras rodovias federais, os pontos de parada serão feitos e mantidos pelo DNIT, segundo Bastos.
Pela Lei 13.103, o Estado e a iniciativa privada têm cinco anos para aumentar o número de pontos de descanso para motoristas.
Refinanciamento com o BNDES
Quando esta edição estava sendo fechada, os transportadores esperavam que a presidente Dilma Rousseff sancionasse o projeto de lei de conversão (PLV 2/2015), originário da Medida Provisória 661/2014. Ela tinha prazo até o dia 21 de maio. Entre outras medidas, o projeto regulamenta o refinanciamento de caminhões (e outros equipamentos) adquiridos até 31 de dezembro do ano passado.
Se não houver veto, poderão ser beneficiados desde caminhoneiros autônomos até as maiores empresas de transporte rodoviário de carga. A diferença é que só autônomos e empresas com receita bruta de até R$ 2,4 milhões por ano terão juros subvencionados pela União. As condições serão definidas pelo Ministério da Fazenda.
Poderão ser refinanciadas as 12 primeiras parcelas que vencerem depois que o interessado entrar com o pedido – ou todas as parcelas, se o número for menor que 12. Mas, primeiro, é preciso esperar pela sanção da presidente.
A fiscalização do tempo de direção
Baixada no dia 29 de abril, a resolução nº 525, do Contran, diz que a fiscalização do tempo de direção e do intervalo de descanso do motorista profissional se dará: pela “análise do disco ou fita diagrama do registrador instantâneo e inalterável de velocidade e tempo (tacógrafo) ou de outros meios eletrônicos idôneos instalados no veículo”; pela verificação do diário de bordo, papeleta ou ficha de trabalho externo, fornecida pelo empregador; pela verificação da ficha de trabalho do autônomo.
A fiscalização pelos documentos só ocorrerá se não puder ser feita pelo tacógrafo. O autônomo deverá portar sua ficha de trabalho das últimas 24 horas. A resolução permite um erro máximo de dois minutos a cada 24 horas e de dez minutos a cada sete dias no tempo de direção e intervalo de descanso.
A Lei 13.103 diz que o motorista não pode dirigir por mais de cinco horas e meia ininterruptas. A cada seis horas, precisa descansar meia hora direta ou fracionada. O caminhoneiro também precisa descansar 11 horas dentro de um período de 24 horas, sendo que oito horas precisam ser ininterruptas e as demais podem coincidir com os intervalos para descanso.
Cabe ressaltar que o motorista empregado não pode dirigir mais que 12 horas por dia, sendo oito normais e quatro extras. E que, até 3 de setembro, as fiscalizações serão apenas educativas. As multas só poderão ser aplicadas por infrações cometidas em estradas nas quais o governo disser que há condições para o descanso. A primeira lista de rodovias onde a lei vai vigorar terá de ser publicada até 3 de setembro. Somente em março de 2018 é que a lei valerá para todas as rodovias.
Multas perdoadas
Todas as multas aplicadas com fundamento na Lei 12.619 (antiga Lei do Descanso), de 30 de abril de 2012, foram perdoadas pelo decreto federal 8.433, de 16 de abril. Viraram advertências. Quem quiser o dinheiro de volta deverá pedir por escrito ao órgão de trânsito que aplicou a multa, nos casos que envolvem o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), e ao Ministério do Trabalho, nas autuações de empregadores.
Pagamento eletrônico de frete
A resolução nº 4.674, publicada dia 17 de abril pela ANTT, regulamenta a gratuidade de serviços relacionados ao Pagamento Eletrônico de Frete (PEF). Os autônomos têm direito a quatro saques e quatro transferências bancárias gratuitos por Código Identificador de Operação de Transporte (Ciot). A resolução estabelece multa de 100% do valor do frete (mínimo de R$ 550 e máximo de R$ 10.500) se o contratante desobedecer essa regra.
O advogado da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), Alziro da Motta Santos Filho, que participou da comissão que estudou o PEF e propôs a resolução, lembra que o autônomo pode optar por receber em conta-corrente ou poupança ou no cartão. “Essa possibilidade agora está na lei (13.103). Antes estava só em resolução”, afirma. Ele conta que a entidade está lutando para que a ANTT estenda o Ciot a todos os transportadores, incluindo as grandes empresas.
Exame toxicológico: Quando? Como? Quem paga?
Em 29 de abril, o Denatran baixou a portaria 50, que suspende o credenciamento de três laboratórios que o próprio órgão havia homologado para fazer o teste toxicológico dos motoristas profissionais, conforme obriga a Lei 13.103. Entre outros motivos, o Denatran alega que há divergências nos calendários dos exames previstos na lei e em resoluções do Contran. Estavam credenciados os seguintes laboratórios: Citilab Diagnóstico, Omega Brasil e Psychemedics Brasil.
O exame com janela de detecção mínima de 90 dias é obrigatório em três situações: para obtenção e renovação de CNH nas categorias C, D e E; na admissão e demissão dos motoristas empregados; e na metade do prazo de validade das CNHs. No primeiro caso, começa a valer dia 2 de junho de 2015; no segundo, em março do ano que vem; e no terceiro, em agosto de 2018.
A CNTA solicitou ao governo que o custo do teste não recaia sobre o profissional. A entidade diz que o exame custa R$ 360. E, no site www.cntabr.org.br, criticou os laboratórios. “A CNTA alerta que é uma ação discriminatória impor essa condição (exame) apenas aos profissionais do setor, que juntos somam quase dois milhões e meio de transportadores”. A entidade ressalta também que esta medida pode ser resultado da influência dos laboratórios e setores da medicina, junto aos políticos, para obter vantagens às custas dos trabalhadores, diz a nota.
O Ministério da Saúde também se mostrou contra o exame. No dia 27 de fevereiro sugeriu à presidente Dilma Rousseff que o vetasse, mas não foi atendido. O parecer alegava que o teste não identifica “risco imediato de o motorista profissional dirigir sob influência de drogas e outras substâncias psicoativas, nem proporciona medida de intervenção imediata”.
Do outro lado, o presidente da Associação Brasileira de Laboratórios Toxicológicos (Abratox), Marcello Santos, diz que a entidade está estudando qual medida adotar em relação ao descredenciamento dos laboratórios. “A suspensão do credenciamento nos pegou de surpresa. Os laboratórios investiram R$ 50 milhões para atender à demanda dos caminhoneiros”, afirma.
Ele alega que o exame, feito num fio de cabelo, não custará mais que R$ 280. E que, sem dúvida, é um passo importante para a contenção do uso de drogas na boleia. “Ao contrário de outros exames, o do cabelo consegue detectar a utilização de drogas por até mais de três meses”, explica.
Para ele, o Ministério da Saúde está correto ao dizer que o exame não detecta risco imediato de uso de drogas. Mas argumenta que o objetivo não é esse. “O uso de droga é recorrente, muitas vezes de maneira crescente. No Brasil, os caminhoneiros são submetidos a condições bastante duras de trabalho. Cada ponto de parada é um ponto de tráfico. O uso recorrente de substâncias deve ser um impeditivo para habilitação de motoristas, principalmente dos que dirigem veículos de maior porte.”
Santos ressalta que o objetivo do exame não é saber se o motorista está sob efeito de droga no momento, mas identificar um padrão de comportamento para o médico do órgão do trânsito decidir se concede habilitação ou não. O profissional pode ficar temporariamente inapto para dirigir. O presidente nega que a obrigatoriedade do exame, que já constava da Lei do Descanso (12.619), seja uma medida aprovada pelo Congresso por lobby dos laboratórios. “Foram ouvidos diversos setores da sociedade.”