Contrários à obrigatoriedade do teste do fio de cabelo, implantado em 2015, duvidam de sua importância na redução do número de acidentes
NELSON BORTOLIN
Mais de três anos após sua implantação, o exame toxicológico de larga janela de detecção, obrigatório para todos os motoristas profissionais, ainda gera polêmica e enfrenta resistências. Seus defensores alegam que o exame foi o responsável pela expressiva queda no número de acidentes no País. Os contrários acham que a redução das ocorrências de trânsito tem mais a ver com a crise econômica, que fez diminuir o tráfego de veículos nas rodovias.
Vamos aos fatos e aos números: o exame, feito a partir de fios de cabelo dos motoristas, tornou-se obrigatório em março de 2015. Segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), o número de acidentes nas rodovias federais já havia caído 9% no ano anterior. Em 2015, a queda foi bem maior: 28%. As ocorrências sofreram novas reduções em 2016 e 2017, de 21% e 7,5%, respectivamente.
As mortes também vinham em leve declínio. E, no ano em que o exame começou a ser feito, despencaram 17%. Depois, houve outras quedas: de 6,6% e 2,7% em 2016 e 2017, respectivamente.
Quando consideramos apenas os acidentes com caminhões, há quedas mais expressivas ainda. Eles já tinham diminuído 12% um ano antes do exame e caíram 34% em 2015. Em 2016 e 2017, tiveram reduções de 28% e 9%. O número de mortes, no entanto, cai em proporções bem inferiores: 21% em 2015 e 6% em 2016. E o que é pior: no ano passado, os óbitos em acidentes que envolveram caminhões cresceram 9,6%, mesmo tendo o número de acidentes caído 9,2%. Ou seja, a gravidade das ocorrências aumentou.
Desde 2014, quando a economia brasileira desacelerou completamente, há redução do volume de tráfego de caminhões, o que certamente contribui para a diminuição dos acidentes. Mas essa queda é menor. Segundo o Índice ABCR (Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias), o volume de veículos pesados caiu 2,61% naquele ano. E mais 6,16% e 5,96%, respectivamente, nos anos de 2015 e 2016. No ano passado, houve um leve crescimento no volume de caminhões que passaram pelas rodovias concedidas: 0,83%.
Não existe nenhum indicador para comparar a evolução do tráfego nas estradas não privatizadas.
Em nota enviada à Carga Pesada, a PRF afirma ter “grande dificuldade de mensurar o efeito da exigência do exame toxicológico, embora seja significativa a diminuição no número de acidentes”. De acordo com a assessoria do órgão, esta é a década definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o combate de acidentes em todo o mundo e a PRF “tem alcançado excelentes resultados” em ações que realiza, seja nas rodovias ou nas escolas, com projetos de educação para o trânsito.
Empresário vê lobby dos laboratórios
O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) não sabe informar quantos exames toxicológicos foram realizados desde 2015. Mas, de acordo com sua assessoria, do início de 2017 até abril de 2018, foram 2,4 milhões em todo o País. Calculando uma média de R$ 300 por exame, os motoristas profissionais gastaram cerca de R$ 744 milhões com esses procedimentos.
Na opinião do presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de São Paulo (Setcesp), Tayguara Helou, da forma como foi implantado, o exame atende somente aos interesses dos laboratórios. “Foi um grande lobby que fizeram em Brasília”, afirma.
Ele critica especificamente a exigência do exame na contratação e na demissão de motoristas profissionais. “Se o profissional leva um exame positivo quando está entrando numa transportadora, ele não vai ser contratado. Se dá positivo depois de demitido, o exame é arquivado pela empresa”, alega.
O exame mostra se o profissional usou drogas nos últimos 90 dias, mas é incapaz de apontar o momento em que houve o consumo. “A forma como o exame é exigido não ajuda o motorista que está com a patologia tratar seu vício. Não traz benefício para a empresa e nem à sociedade”, complementa.
Para Helou, é difícil mensurar se o teste é responsável pela redução de acidentes. “Em 2015 houve aprofundamento da crise econômica. Nós tivemos uma redução de 35% no volume de carga transportada”, alega. Ou seja, também caiu o tráfego de caminhões nas rodovias.
O empresário acredita que os exames toxicológicos seriam muito mais eficientes se realizados dentro dos programas das empresas de prevenção do álcool e da droga. “Faz muito mais sentido.”
O presidente da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), Diumar Bueno, diz que as entidades do setor ainda não “perceberam na prática e com clareza” o resultado do exame toxicológico. “O exame sozinho não é capaz de diminuir o volume absurdo de acidentes nas estradas do nosso País. É necessário um plano maior de atuação. Acredito em projetos simples, com resultados maiores, mais imediatos e com custo muito menor.”
Para Bueno, se o dinheiro gasto até agora com os exames fosse aplicado num programa específico da PRF, com compra de equipamentos e aumento do efetivo de fiscalizações nas rodovias, o impacto seria maior.
Já a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT) tenta derrubar na Justiça a exigência do exame. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) apresentada pela entidade tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Para o diretor de Assuntos Trabalhistas da CNTTT, Luis Festino, o melhor caminho para se combater os acidentes com motoristas profissionais é a diminuição das horas de trabalho. “Da forma que vêm sendo realizados, os exames atuam apenas nas consequências do uso de drogas e não nas suas causas.”
Os Detrans também reclamam
Quem também não está contente com a exigência do exame são os Departamentos Estaduais de Trânsito. Segundo Antônio Carlos Gouveia, presidente da AND – associação que representa os Detrans –, o principal problema é que não há controle sobre os laboratórios que fazem a coleta e processam os exames. “Minha preocupação é que vivemos num País onde muitas vezes as pessoas buscam os caminhos que não são os mais sérios”, afirma.
Ele também considera que o custo do exame – entre R$ 200 e R$ 300 – é muito alto, o que vem gerando rebaixamento de carteiras das categorias C, D e E para A e B. “A pessoa que não precisa dos veículos pesados para trabalhar rebaixou sua categoria. Foram milhares de casos”, conta.
Uma alternativa mais barata, na opinião do presidente da AND, seria a aplicação de testes de saliva em blitze nas rodovias. Ao contrário do exame do fio de cabelo, este tipo de teste diz se o condutor está sob efeito de drogas no momento em que é realizado.
Resultado ‘negativo’ por R$ 1.200
Para não ficarem sem suas habilitações, muitos motoristas que fazem uso de entorpecentes estão se valendo dos serviços de quadrilhas que fraudam o exame toxicológico. Basta digitar no Google as palavras “fraude” e “exame toxicológico” que vai aparecer uma série de notícias a respeito.
Uma das fraudes foi identificada em Criciúma (SC). Dia 22 de maio deste ano, o Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) deflagrou a operação Falso Negativo. Pelo preço de R$ 1.200, a quadrilha enviava fios de cabelo de outra pessoa para o laboratório e depois entregava o resultado negativo ao motorista.
A Carga Pesada procurou o Ministério Público de Santa Catarina para saber como andam as investigações. O promotor de Justiça Gustavo Wieggers informou que o procedimento investigatório já foi concluído e quatro pessoas foram denunciadas por falsidade ideológica. Duas delas eram de um laboratório local. “O laboratório de Criciúma tinha um contrato com um laboratório do Paraná, que recebia o material e remetia aos EUA, onde o teste era realizado. Mas o laboratório do Paraná não tinha nenhuma participação no esquema”, disse o Ministério Público.
Além disso, foram instaurados 15 inquéritos policiais para apurar a responsabilidade dos motoristas. Foram mais de 200 casos suspeitos de adulteração dos exames.
Em março do ano passado, a Rede Record exibiu reportagem mostrando um esquema de venda de resultados falsos negativos por R$ 1.500 em Guarulhos. À época, o Denatran disse à equipe de televisão que abriria inquérito para apurar a denúncia. Um ano e meio após a reportagem, a Carga Pesada questionou o órgão no final de agosto deste ano. Mas a resposta do departamento não mencionou o caso. Apenas relatou sua responsabilidade em fiscalizar os laboratórios.
Especialistas têm opiniões diferentes
Segundo o jornalista, consultor em segurança do trânsito e idealizador do Programa Volvo de Segurança no Trânsito (PVST), J. Pedro Corrêa, além de uma solução cara para os caminhoneiros, não existe comprovação científica da eficiência do exame. “As entidades médicas que tenho consultado não o avalizam e mesmo a Polícia Rodoviária Federal não atribui a ele a importância apregoada pela empresa que montou fábrica e produz os resultados no Brasil”, declara. Ele se refere à Quest Labet, inaugurada em fevereiro deste ano em Santana de Parnaíba (SP).
J. Pedro ressalta que PRF atribui a queda do número de acidentes a um trabalho mais consistente que ela mesma faz nas estradas. “Como não dispomos de estatísticas mais confiáveis, é difícil atribuir a uma causa específica a melhoria dos resultados.” Ele diz, no entanto, que “algum efeito positivo” no controle de acidentes o exame deve ter. E reconhece a importância de o exame toxicológico ter “enquadrado” motoristas que se utilizam de drogas.
De acordo com o consultor, os especialistas em trânsito aguardam novos desdobramentos que venham a comprovar a validade dos exames. “Como diz a velha máxima: ‘enquanto o mar briga com as pedras quem sai perdendo é o caranguejo’, no caso os profissionais do volante”, critica.
Questionado se o exame de saliva seria mais confiável, J. Pedro afirma, ressalvando que não é especialista no assunto: “Creio que qualquer medida que possa ser comprovadamente efetiva será mais que bem-vinda. É preciso que tenha eficácia. O que não se pode é ficar fazendo experiência às custas do bolso dos caminhoneiros”, declara.
Ele ressalta ainda que o problema das drogas é muito grave e que ninguém – governo, setor de transportes, sociedade – pode ignorá-lo. “Ocorre que se trata de problema de extrema complexidade por envolver inúmeras variantes que, em alguns casos, fogem do controle dos principais protagonistas.”
Já o coordenador do SOS Estradas, Rodolfo Rizzotto, é entusiasta do exame. E não se conforma com as críticas feitas pelas pessoas contrárias, já que tem certeza de que o exame é o principal responsável pela queda do número de acidentes. “O único fato que pode explicar parcialmente uma queda tão expressiva dos acidentes de caminhão e ônibus é o exame toxicológico”, alega.
Ele critica os Detrans: “Não conseguem controlar as fraudes de venda de CNHs e não teriam competência para fiscalizar os laboratórios”.
Rizzotto chama de “balela” o fato de algumas entidades, alegando custos menores, defenderem o teste de saliva em vez do exame de fio de cabelo. “Cada teste de saliva representa um custo entre R$ 140 e R$ 200, dependendo do dólar. Isso sem contar toda operação de fiscalização envolvida, agentes de trânsito, combustível, guinchos, interferência no fluxo viário, etc.”, diz o coordenador.
Além dos Detrans, o coordenador critica os representantes do setor de transporte, que se posicionam contra o exame. Ele acusa a NTC&Logística e o Sindicato das Empresas de Transportes de São Paulo (Setcesp) de terem lutado para reduzir os direitos dos caminhoneiros quando houve a revogação da lei do descanso, a 12.619. O excesso de horas na direção, diz Rizzotto, é a principal justificativa para os condutores usarem drogas. “Quem cria as condições de exploração que levam muitos motoristas a usarem drogas para suportar a jornada é contra o exame toxicológico”, ressalta.
Para ele, esta seria uma “coerência do mal”. “Hoje, as empresas de transporte reclamam do roubo de carga, mas esquecem que os motoristas que usam drogas estão próximos do mundo do crime”, afirma. São esses motoristas que, segundo o coordenador, alimentam as quadrilhas de informações sobre o transporte de carga.
Rizzotto também acusa as transportadoras de não atuarem para evitar que seus motoristas usem drogas. “Falar em programas de prevenção de álcool e drogas nas empresas é brincadeira. São raros e louváveis os casos, mas a grande maioria somente cria programas por força de lei.”