Com cidades desabastecidas, governo se sente encurralado e atende principais reivindicações na Greve dos Caminhoneiros
NELSON BORTOLIN
Foram dez dias em que o País parou. Com centenas de pontos de bloqueios nas rodovias de todos os Estados, os caminhoneiros conseguiram impor suas reivindicações como pauta para o governo e para o Congresso Nacional. De 21 a 31 de maio, não se falou em outra coisa. Diferentemente de outras paralisações, a categoria saiu vitoriosa dessa vez.
Foram três conquistas importantes: tabela de valores mínimos de frete, redução nos preços do óleo diesel e o fim da cobrança de pedágio dos eixos suspensos de caminhões vazios. Esta última já havia sido acatada pelo governo federal no movimento anterior, em 2015, mas não estava sendo respeitada pelas concessões estaduais.
A TABELA – Depois de uma rápida tramitação no Congresso, a Medida Provisória 832 foi encaminhada para sanção do presidente Michel Temer (PMDB). Pelo texto, fica instituída a Política Nacional de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas e estabelecida a proibição de se fechar qualquer acordo de fretes em valores menores que os das tabelas da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
O projeto prevê que as tabelas, que priorizam os custos de óleo diesel e pedágios como variáveis, sejam publicadas duas vezes no ano pela agência – até 20 de janeiro e 20 de julho – com validade para o semestre. Caso não sejam publicadas nesses prazos, as anteriores continuarão vigentes e seus valores serão atualizados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no período acumulado.
Sempre que ocorrer oscilação no preço do óleo diesel no mercado nacional superior a 10% em relação ao valor considerado na planilha de cálculos, para mais ou para menos, outras tabelas com pisos deverão ser publicadas pela ANTT, levando em conta os novos valores. Pelo texto, caberá à ANTT tomar as providências para que a medida seja, de fato, implementada, bem como as punições, quando couberem.
Caso seja contratado por tarifa abaixo da registrada na tabela, o caminhoneiro tem direito a buscar indenização na Justiça. Receberá duas vezes a diferença entre o valor pago e o que seria devido.
“Muitos não acreditavam, mas a perseverança, a união e a luta venceram”, afirma o representante dos caminhoneiros que transportam grãos, Gilson Baitaca. Para ele, as tabelas são “uma vitória sobre o poder econômico, o capitalismo selvagem e o sistema que escraviza os caminhoneiros”.
NA ESTRADA – O caminhoneiro paranaense Fábio Alexandre está muito satisfeito com a tabela. Antes, ele recebia R$ 2.700 para carregar farinha de Londrina a São Paulo, e hoje recebe R$ 3.500. Mas o mais importante para ele é o fim do frete de retorno. “Querem que a gente volte pela metade do preço”, ressalta. Também transportando farinha, Gerson Silveira diz a mesma coisa. “Não sobrava nada no frete de retorno. Agora é o mesmo valor ida e volta. Se ficar assim, vai dar para trocar o pneu, vai dar uma melhorada.”
O presidente do Sindicato dos Caminhoneiros Autônomos (Sindicam) em Londrina, Carlos Roberto Dellarosa, confirma que a bronca maior dos embarcadores é com o frete de retorno. Segundo ele, antes da greve, um frete de grãos de Londrina a Rondonópolis (MT) custava R$ 190 a tonelada. Já a volta, com fertilizantes, saía a R$ 70 a tonelada. Agora, não há diferença de valor nas duas viagens.
A ANTT criou cinco tabelas: para o transporte de carga geral, a granel, de cargas frigoríficas, perigosas e neogranéis (carga geral, sem embalagem, transportada em lotes, como automóveis, por exemplo). E estabeleceu um custo por quilômetro/eixo de acordo com a distância percorrida.
Tabela desagrada transportadoras de grãos
Consenso entre os caminhoneiros, a tabela desagrada muitas empresas de transporte, principalmente aquelas que terceirizam suas atividades para autônomos. A ATR, associação de Ribeirão Preto (SP) que representa empresas de transporte de grãos, apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) para tentar derrubar a tabela. “Até pode parecer curioso que uma entidade de transporte apresente essa ação”, afirma o advogado da entidade, Moacyr Francisco Ramos. É que, segundo ele, as transportadoras não têm como pagar os valores da tabela aos caminhoneiros porque os embarcadores não aceitam o aumento de custo. “Não é que a ATR esteja na contramão do transporte, mas é uma peculiaridade do segmento de commodities trabalhar com subcontratados. A tabela é economicamente inviável”, declara.
Além disso, o advogado observa que se trata da única tabela de preços do País e que ela é inconstitucional. “Contraria o princípio da livre iniciativa”, justifica.
Produtores falaram em “tiro no pé”
O presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja), Antonio Galvan, disse à Carga Pesada que a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) irá insistir na Justiça para derrubar o tabelamento de frete. “Não tem como aceitar qualquer tipo de tabela. A iniciativa privada trabalha com oferta e demanda”, alega. Ele afirmou que a Aprosoja apoiou a greve dos caminhoneiros. “Esse absurdo do preço do combustível atinge a gente. Na prática, quem paga isso somos nós que demandamos pelo frete.” Mas, para Galvan, a reivindicação da tabela mínima foi um “tiro no pé” do caminhoneiro. “O autônomo acabou decretando a falência dele. Ninguém mais vai puxar frete com ele”, alega.
Já o representante do Sindicato dos Transportadores Autônomos de Carga (Sinditac) de Ijuí (RS), Carlos Alberto Litti Dahmer, diz que a posição dos produtores dificultou o fim do impasse sobre a tabela de fretes. “A Confederação Nacional da Agricultura é contrária, fez uma Adin contra o piso mínimo do frete. Não quer pagar. No entanto, ela está exigindo que exista um preço mínimo do café. Para receber, é possível. É constitucional e é legal existir um piso mínimo do café. Porém, para pagar o preço mínimo do frete é inconstitucional. Dois pesos, duas medidas. Quando me serve, sou favorável, quando não me serve, sou contrário”, criticou.
Decisão está nas mãos do Supremo
A continuidade ou não da tabela agora depende do Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 27 de agosto, o ministro Luiz Fux irá realizar uma audiência pública para tratar do assunto. Ele é relator de ao menos três ações de inconstitucionalidade (Adins) movidas contra a tabela. Além da ATR, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) tentam derrubar a medida no tribunal. Fux suspendeu mais de 50 liminares obtidas por embarcadores em primeira instância que permitiam a eles ignorar a tabela.
A intenção do ministro era obter um acordo entre caminhoneiros, a indústria e o agronegócio em torno da tabela. Ele realizou duas reuniões com as partes, mas não obteve sucesso. “Todos entenderam que o Brasil não pode mais passar pelos momentos que passou (sobre a greve). Então, cada um vai dar uma cota de colaboração para o País”, disse ele, segundo a Agência Brasil.
Os embarcadores queriam que fosse apresentada uma tabela referencial, ou seja, que não precisasse ser cumprida obrigatoriamente. Mas isso já existe desde a greve de 2015.
Quem vai esperar a audiência de 27 de agosto também é a ANTT. As tabelas hoje em vigor, foram divulgadas dia 30 de maio, quando os caminhoneiros ainda estavam parados. A resistência, principalmente da bancada ruralista no Congresso, fez o governo voltar atrás e baixar outras tabelas, com valores menores e excluindo os fretes de retorno do tabelamento. Foi a vez de os grevistas chiarem e o governo cancelou essa segunda versão em questão de horas.
A tabela em vigor ainda é tida como provisória.
Eixos suspensos ficam isentos de pedágio
Uma das primeiras medidas tomadas pelo governo federal durante as negociações com os caminhoneiros foi a edição da medida provisória 833, dia 27 de maio. Ela isenta do pagamento de pedágio os eixos suspensos de caminhões, quando o veículo está vazio. Na verdade, a isenção já consta da Lei 13.103, a Lei do Caminhoneiro, desde a greve anterior da categoria, em 2015. Mas os órgãos reguladores estaduais autorizaram as concessionárias a continuar fazendo a cobrança. Dessa forma, a medida só era cumprida nas concessões federais. Agora é diferente. Logo após a edição da MP, as agências reguladoras estaduais divulgaram notas se comprometendo a obedecê-la.
A legislação permite que veículos de carga tenham mecanismo de suspensão de determinados eixos do cavalo e da carreta, quando descarregados, a fim de economizar pneus, freios, rolamentos e molas. Uma carreta de três eixos pode levantar um deles. Um bitrem de sete eixos pode suspender de dois a três eixos, dependendo da configuração.
A reportagem calculou quanto é possível economizar com a decisão do governo. Um bitrem que vai da região de Foz do Iguaçu ao Porto de Paranaguá paga R$ 821,80 só de ida em pedágio. Se estivesse descarregado e pudesse elevar dois eixos, pagaria R$ 587. Podendo suspender três eixos, deixaria R$ 469,60 para a concessionária.
Entre os técnicos, não há consenso sobre o assunto. O engenheiro, diretor técnico executivo da NTC&Logística e integrante do Conselho Nacional do Trânsito (Contran), Neuto Gonçalves dos Reis, diz que, apesar de permitida pela legislação, a suspensão do eixo torna o veículo menos seguro. Ele afirma haver estudos segundo os quais o veículo nessa condição tem mais chances de derrapar sob chuva. Reis ressalta também que as concessionárias não têm como fiscalizar se os caminhões estão vazios. “Não vão poder parar caminhão por caminhão que chega com eixo suspenso e pedir, por exemplo, que o motorista abra o baú.”
Já o engenheiro especialista em transporte Rubem Melo, da TRS de Curitiba, pensa o contrário. “Se o veículo está vazio e um eixo é suspenso, o peso da carreta vai um pouco mais para a unidade tratora. Ele fica mais seguro ainda”, alega.
Segundo Melo, não há justificativa para que seja cobrado pedágio desses eixos porque eles não têm impacto sobre o pavimento. O engenheiro concorda que a concessionária não terá condições de checar se o caminhão está realmente vazio, uma vez que, mesmo carregado, é possível levantar os eixos dos veículos. “A maioria dos caminhões tem mecanismos que permitem a suspensão dos eixos de dentro da cabine. O motorista pode erguê-los próximo da praça de pedágio e depois baixá-los.” Melo ressalta, no entanto, que essa manobra traz prejuízos “enormes” para o veículo.
Desconto chega aos postos de combustíveis pela metade
Uma das principais medidas tomadas pelo governo para encerrar a greve foi a redução de R$ 0,46 no preço do diesel, prevista na Medida Provisória 838. Mas, segundo a única pesquisa nacional de preços de combustível, esse desconto chegou parcialmente às bombas. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) apurou um preço médio de R$ 3,595 para o litro do diesel S500 no País na semana de 13 a 19 de maio – imediatamente anterior ao início da paralisação.
Na última pesquisa disponível no site da agência, referente à semana de 8 a 14 de julho, a média é de R$ 3,388, ou seja, apenas R$ 0,21 menor que a anterior à greve. No caso do S10, o preço médio baixou de R$ 3,691 para R$ 3,463 no mesmo período – desconto de R$ 0,23.
Feita em 3.224 postos de 436 municípios, a pesquisa da ANP mostra que, em apenas três, o desconto chegou ou superou o valor prometido pelo governo: em Niterói (RJ), onde o diesel comum caiu 70 centavos; em Santo Antônio de Pádua (RS), com desconto de R$ 0,49; e em Três Lagoas, com R$ 0,46.
Na outra ponta, teria havido aumento entre R$ 0,004 e R$ 0,13 no valor do combustível em 16 municípios, sendo três capitais: Cuiabá (R$ 0,017), Palmas (R$ 0,045) e São Luís (R$ 0,080).
OUTRO LADO – Diretor dos Postos Túlio, rede com presença no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Giancarlo Pasa discorda da pesquisa da agência. “Não sei qual é a metodologia usada. O fato é que todas as grandes redes de postos de estrada repassaram o desconto de R$ 0,46 assim que saiu o acordo”, garante.
Na opinião de Pasa, se a pesquisa da ANP estivesse correta, os caminhoneiros já teriam retomado a greve.