Luciano Alves Pereira
A gente morre na BR-3 (hoje, 040), dizia a canção de Tony Tornado, nos anos 1970. E não se tratava de lirismo, conversa de poeta. Morre-se demais no trânsito do País, nas estradas e nas cidades. Virou banalidade. Por isso, quando se rompe a mesmice, o trecho se enche de agito. Há poucos registros, mas suficientes pra inundar os corações, quando se constata quanto pode a solidariedade humana.
É um privilégio para a Carga Pesada poder estampar o ocorrido no último 20 de maio, no km 577 da BR-040, ao Sul de Belo Horizonte, no município de Itabirito (MG). Envolveram-se dois veículos e engrossaram as estatísticas das colisões frontais numa rodovia de alto fluxo que já deveria contar com barreiras divisórias de tráfego há décadas.
Naquele dia de pista seca, o veterano motorista Marco Túlio Vieira de Resende, mais conhecido por Bolinha, carregou seu Mercedes 1620 tanque no terminal da Shell em Betim e retornava à sua Carandaí (MG), a 150 quilômetros da capital. Levava 10 mil litros de diesel e cinco mil de gasolina. Eram perto de 14 horas, quando uma Chevrolet S10, desgovernada, bateu frontalmente no 1620. Impacto nessas condições provoca deformações assustadoras. O caminhão virou em sentido contrário na pista. Marco Túlio percebeu que suas pernas haviam ficado presas nas ferragens. Tentou se soltar e não conseguiu. Estando de costas para o ponto da colisão, ouviu um chiado e os pneus começaram a estourar. Ele entendeu que a S10 estava pegando fogo e este se alastrava para o caminhão.
Este foi um momento de terror. “Os curiosos se preocupavam em tirar fotos”, lembra Marco Túlio, que continuava preso pelas pernas. “A funcionária da concessionária (Via 040) pedia que todos se afastassem”, acrescenta. Mas não perdeu a fé. Ele é devoto de N. Sra. Aparecida e, apesar de estar em estado de torpor, foi “reanimado pela Bíblia e pelo livro Ágape, do padre Marcelo Rossi”, recorda. Os volumes caíram-lhe na cabeça e o caminhoneiro entendeu que aquilo “era o meu sinal”. Ele revela que ficou calmo e teve a ideia de jogar coisas para fora da cabine para mostrar que ali havia uma pessoa viva.
Passante na hora, Pedro Henrique da Silva Duarte, de 32 anos, tocava uma carreta Mercedes 1634 com caçamba, que ficou retida no congestionamento. Quis o caprichoso destino que dois profissionais da estrada, ambos filhos de caminhoneiros, estivessem diante da iminência de um desfecho ainda mais trágico, não bastasse o que aconteceu com a S10, já totalmente tomada pelo fogo que levou à morte cinco pessoas.
Segundo Pedro Henrique, havia gente tentando arrancar a cabine do 1620, sem sucesso, enquanto a funcionária da Via 040 continuava a gritar: “Saiam daí! Vai explodir tudo”. Ele, porém, se lembrou do que lhe disse um instrutor sobre transporte de derivados de petróleo: o tanque cheio não explode fácil.
Esse conhecimento foi decisivo. “Dá pra salvar esse cara”, previu Pedro Henrique. Correu até sua carreta, a cerca de um quilômetro, para pegar um cabo de aço. “Eu nem tinha certeza se o cabo de aço estava na gaveta, mas fui.” E voltou correndo com o cabo de aço na mão, prendeu-o na coluna da cabine do caminhão de Marco Túlio e tentou puxar. Não deu. Não havia força suficiente. Eis que “surge do nada” um desconhecido com uma picape Frontier preta. “Ele prendeu o cabo na traseira da picape e desencravou a cabine do chassi”, explica. Tão repentinos quanto surgiram, a Frontier e o seu condutor desapareceram no anonimato.
Marco Túlio foi salvo. Não sem fraturas sérias no quadril e tornozelo esquerdo. Foi operado e está “curtindo o lucro” na sua Carandaí, cercado pelos cuidados da esposa Aparecida Victoretti, união de um único casamento de 24 anos. Vai demorar meses para recuperar-se. No momento, o trauma emocional prevalece. “Vou analisar a vida quando estiver para voltar ao trabalho”, adianta ele. Após 33 anos de volante, sem acidentes, o motorista do Posto Esperança local repete que “a mão de Deus passou na sua frente, ajudada pelo ‘anjo’ Pedro Henrique”, que estava no lugar certo, na hora certa, possuído da determinação de maior significado. Já este assume: “Tive muito medo de vê-lo morrer ali, na minha frente. Fiquei desesperado para fazer alguma coisa”. Não deixa de destacar, porém, a instantânea e oportuníssima iniciativa do “cara da Frontier”.
As ações de dois ilustres desconhecidos prolongaram a vida de Marco Túlio. Tais “rompantes salvadores” precisam ecoar pelas serras, vales, planaltos, baixios e grotões e provar ao mundo circulante das estradas que o caminhoneiro preserva a sua histórica genética do socorro generoso, até com risco da própria vida.