O engenheiro mecânico Rubem Melo afirma que ensino atual não acompanha a complexidade dos veículos modernos e defende novos modelos de habilitação, reciclagem periódica e participação das transportadoras e concessionárias de rodovias
Nelson Bortolin
A formação do motorista profissional brasileiro está defasada diante da sofisticação crescente dos caminhões e da complexidade dos conjuntos de carga. Essa é a avaliação do engenheiro mecânico Rubem Melo, da TRS Engenharia, que há décadas estuda acidentes envolvendo veículos pesados. Para ele, o Brasil mantém um modelo ultrapassado, baseado na ideia equivocada de que “motorista nasce sabendo”.
“Temos no Brasil o conceito de que o motorista não precisa treinar. Treinamos o pessoal administrativo, de saúde, de segurança, mas o motorista não. O caminhão não pode parar, porque caminhão parado não gera frete”, diz Melo. Esse pensamento, segundo ele, ajudou a criar um cenário caótico nas estradas.
Autoescolas ensinam o básico
Questionado sobre o que as autoescolas ensinam aos candidatos, Melo é direto: “O básico.” Ele explica que “até se fala de freio motor”, mas sem aprofundar diferenças fundamentais entre os diversos tipos de conjuntos: cavalo simples, carreta, bitrem, rodotrem ou canavieiro de 11 eixos. “A formação não apresenta a especificidade necessária. O aluno treina com uma carretinha simples, mas sai habilitado para dirigir um rodotrem de nove eixos. É completamente diferente.”
Segundo ele, a falta de correspondência entre o treinamento e a realidade foi prevista há décadas. Quando o Brasil começou a liberar conjuntos mais longos, ainda nos anos 1990, especialistas já alertavam que a formação não acompanhava a evolução do transporte. “O motorista tira a carteira num caminhãozinho. No dia seguinte, está descendo a serra com nove eixos. Ele depende da experiência da empresa — se vai colocar um motorista monitor junto, se vai acompanhar —, mas a formação inicial já deveria prever isso.”
Motorista é um técnico em condução de CVC
Para Melo, quem conduz conjuntos mais complexos deveria ter uma formação mais robusta. “Não precisa ser a mesma formação para todo mundo, mas quem vai dirigir um CVC (Combinação de Veículos de Carga) tinha que ter um treinamento quase técnico. Parece utopia, mas, sem isso, não vamos reduzir acidentes.”
Ele lembra que, em sua dissertação de mestrado, defendeu a criação de novas categorias de CNH, como “E1/E2/E3” ou uma “carteira F”, com níveis diferentes de habilitação proporcional ao tipo de equipamento. “Se você vai conduzir um conjunto leve, ok, carteira E comum. Mas se vai trabalhar com rodotrens longos, cargas perigosas ou canavieiros enormes, teria que ter outra categoria.”
Com veículos modernos, repletos de recursos eletrônicos, ele afirma que o motorista deveria ter formação equivalente ao de um técnico. “O caminhão é um equipamento operacional e exige domínio. Hoje, muitos não sabem sequer interpretar alertas no painel.”
Flexibilização da CNH pode agravar o problema
Melo demonstra preocupação com a proposta do governo federal que flexibiliza regras e reduz a necessidade de aulas práticas na formação de condutores. “A pergunta é simples: isso tem chance de melhorar a segurança? Para mim, zero”, afirma.
Ele lembra que, mesmo com o atual modelo — considerado burocrático por muitos —, a formação já é insuficiente. “Se não está dando certo com toda a estrutura de hoje, imagine sem ela. Eliminar boa parte das aulas dos centros de formação de condutores não tem nenhuma chance de melhorar o cenário, do ponto de vista técnico.”
Quem deve treinar o motorista?
Na avaliação do engenheiro, há três atores principais além do governo, que já cumpre sua parte ao habilitar o condutor: concessionárias de rodovias, transportadoras e embarcadores.
“As rodovias concedidas poderiam participar oferecendo centros de treinamento, campanhas educativas e espaços adequados para descanso. Transportadoras e embarcadores, por sua vez, têm responsabilidade direta: os veículos são delas e os motoristas, muitas vezes, também.”
Melo observa que alguns grupos de transporte mais estruturados já criaram centros internos de treinamento e universidades corporativas, o que se reflete em desempenho e menor índice de acidentes. Porém, ainda são exceções. “A grande maioria não treina. Muitas empresas surgiram do legado de caminhoneiros autônomos, que cresceram, mas não estruturaram programas de capacitação. E o próprio motorista, por não ter o hábito, às vezes demonstra ansiedade quando se fala em treinamento.”
Sobre as instituições privadas que se dedicam à formação de motoristas, Melo é crítico: “Os cursos são longos e agregam muito pouco. O motorista passa 8 ou 10 dias ouvindo 90% do que já sabe.”
Para ele, a reciclagem deveria focar tecnologia embarcada, novos sistemas de segurança, limites dos equipamentos e manutenção básica. “Ele precisa entender como funciona um cubo, o que é folga do pino-rei, reconhecer sinais de falha. Isso o curso não entrega.”
Formação híbrida é possível
Melo acredita que parte das aulas poderia ser a distância, desde que acompanhada de horas obrigatórias no veículo. “A teoria funciona bem online. Mas tem que ir ao caminhão, ver folga de cubo, conhecer o equipamento. Formação totalmente remota não funciona.”
Perguntado sobre obrigar periodicamente todos os motoristas a passarem por reciclagem, Melo diz que sim — desde que sem travar o país. “Dá para fazer algo compatível com a realidade. Disponibilizar curso, rede de atendimento. Se nada for feito, o cenário vai piorar a cada dia.”
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