Parece coisa inocente, mas não é: elevar a traseira de caminhões e carretas acima do normal representa perigo para a vida do próprio motorista e de outras pessoas, e é certeza de prejuízos para o dono do veículo. Mesmo assim, virou uma febre, principalmente entre verdureiros. A lei proíbe, mas para tudo temos um “jeitinho”. O Contran deverá tomar medidas a esse respeito
Dilene Antonucci, Janaina Garcia, Luciano Pereira e Nelson Bortolin
É cada dia mais comum ver caminhões e carretas com a traseira elevada além do normal. Os caminhoneiros gastam R$ 1.200 ou até mais para acrescentar calços ou molas adicionais só para deixar o bruto mais “invocado”.
Alguns acham que a mudança dá mais estabilidade. Estão errados. O engenheiro mecânico Rubem Penteado de Melo diz que é o contrário: “A elevação da traseira transfere mais peso para os eixos dianteiros. Isso afeta a estabilidade. E a durabilidade de muitas peças diminui: como o cardã fica muito inclinado, o diferencial vai ‘roncar’ e danificar o rolamento”. Isso, pra começar. A cabine inteira de um caminhão vai se deteriorar mais rápido. E quem modifica a suspensão de um veículo novo perde a garantia de fábrica.
Rubem de Melo lembra ainda que, com a elevação, o para-choque traseiro perde sua função. Num acidente, quem bater atrás de um caminhão modificado sofrerá consequências muito piores. Um carro pequeno pode entrar direto embaixo da carroceria ou da carreta. A carroceria de um caminhão alterado ficará na altura do pescoço do motorista de uma van.
Mesmo sabendo de tudo isso, algumas concessionárias já entregam implementos novos com a mudança, se o comprador pedir. “Paguei R$ 1.200”, disse um caminhoneiro autônomo do Paraná à Carga Pesada. Com calços, a traseira ficou 12 cm mais alta.
Outro motorista colocou mais molas entre as originais para elevar a traseira em 20 cm. “Fica bonito”, justificou, dizendo que pagou R$ 1 mil pelo serviço num posto de molas de Maringá.
A mudança é ilegal. O artigo 8º da Resolução 292/08 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) proíbe “alteração das características originais das molas do veículo, inclusão, exclusão ou modificação de dispositivos da suspensão”. Mesmo assim, alguns Detrans, como o de Santa Catarina, anotam a mudança no documento do veículo, se uma empresa homologada para inspeção veicular der o aval. Assim, o ilegal vira legal.
Por lá, a moda é forte e a Polícia Rodoviária vem intensificando as blitze. Dá multa de R$ 127 e cinco pontos na carteira de habilitação. Os motoristas só podem seguir viagem se retirarem os calços ou molas em excesso. Mas os veículos com a alteração anotada no documento do Detran são poupados.
Essa distorção foi tema de uma reunião do Conselho Nacional do Trânsito (Contran) no final de agosto, mas o órgão ainda não se pronunciou a respeito.
Emílio Dalçoquio: “É ridículo”
A Carga Pesada chegou a este tema por sugestão do empresário Emílio Dalçoquio, diretor operacional da Dalçoquio Transportes, de Santa Catarina. Ele integra o Conselho Editorial da Revista Carga Pesada.
Para Dalçoquio, o fenômeno é coisa de caminhoneiro jovem, “vítima de jogadas de marketing” dos postos de molas. Mas há os que acreditam mesmo que a traseira erguida deixe o caminhão mais firme nas curvas. “Um verdadeiro profissional não cai nessa ideia absurda”, declara.Dalçoquio diz que a alteração prejudica a suspensão dianteira do veículo, “bem como o embuchamento da barra estabilizadora dianteira”. Passar em buracos e “trombar” em cabeceiras de pontes são momentos críticos: “Fica a dúvida sobre o bom funcionamento do veículo na próxima curva”, ressalta.
Ele acrescenta outro perigo fácil de ser constatado: “Numa freada brusca, a traseira erguida facilita o deslocamento da carga para a frente. A vida do motorista está em risco permanente”.
Febre entre verdureiros
“Essa moda começou com os trucks já faz muito tempo. Depois, veio para as carretas”, disse um autônomo.
Se existe um setor no qual as traseiras erguidas são uma febre, é o de transporte de hortifrúti, em que a maioria dos caminhões é de semipesados, com 16 a 29 toneladas. É só dar um pulo na Ceagesp, em São Paulo, para ver.
Flávio Rigueti, que transporta laranja, colocou um grupo de cinco molas a mais. “Sei que o calço é proibido. Fiz isso porque, na curva, o veículo ganha aderência, e o caminhão fica mais bonito”, afirma. Na verdade, tanto o calço como a mola são proibidos.
Clodoaldo Soares, ao lado de sua carga de abacaxi, disse que arrebitou a traseira do caminhão “porque, reto, ele dança muito. Agora, mais reforçado, ele é mais firme nas curvas. Ainda que digam que fica caminhão de boyzinho”. Soares tem 57 anos.
Tem gente que coloca mais mola para levar mais carga. Só que excesso de peso também é ilegal. “Tinha um feixe de 11 molas e agora tenho 24 molas. Além de reforçar o veículo, isso ainda me permite colocar mais peso”, declara Gustavo Henrique Soares de Almeida, que estava com uma carga de abóboras.
Já Amauri Fernando Rosa, 33 anos, que puxa melancia, só fez a mudança porque fica bonito, na opinião dele. “Não influencia nada na estabilidade”, declara. Seu colega Adriano Oliveira dá o mesmo motivo: o caminhão fica bonito.
Há os que não se rendem à “moda”. José Aldair Scalfoni mantém a suspensão original. “Acho inadequado mudar a suspensão, o veículo fica instável. O povo gosta dessa modinha, mas eu não concordo.”
Caminhão perde a garantia, diz Scania
Quem faz a elevação da traseira em veículo novo perde o direito à garantia. A informação é do gerente de Pré-Venda da Scania do Brasil, Celso Mendonça. Segundo ele, a mudança prejudica os periféricos e a própria cabine.
“A finalidade da suspensão é absorver toda irregularidade da pista e preservar o conjunto: o caminhão e a carga”, ressalta Mendonça. Isso só pode acontecer se a suspensão funcionar da maneira como foi projetada, caso contrário as irregularidades do pavimento vão comprometer peças como caixa de bateria, alternador e o compressor de ar. “Com o passar do tempo, todos os acessórios começam a mostrar alguma fadiga e a quebrar”, explica.
Mendonça lembra que mudanças na suspensão traseira também afetam a cabine. “Com o tempo pode haver trinca de para-brisas, trinca de painel e queda da prateleira”, explica. A carga, se for frágil, também pode ser danificada.
“Quando o motorista entra num caminhão cujas características não correspondem mais ao que foi projetado, é a vida dele que está em jogo”, declara.
Minas: “frente no chão e traseira no céu”
Essa é a frase “mágica” que une uma grande galera mineira, cujo gosto em comum está em alterar formas nos caminhões. Possivelmente foi criada pelo DJ Wagner, do Restaurante Fazendinha, na Belém-Brasília, em Tocantins. Gostam de arrebitar a traseira da carroceria a até 2 m da via.
Quem conta essa história é Hadney Salim, conhecido por Dininho, filho de caminhoneiro. Ele montou uma oficina no km 404 da BR-262, junto ao trevo de Pará de Minas. Ali se dedica a arqueamentos de molejos, prolongamentos de para-choques e conversão da suspensão dianteira em mista (ar/molas), entre outros serviços.
Dininho também foi caminhoneiro. Começou a reparar que a turma do Nordeste, especialmente de Itabaiana (SE), passava com trucks com a traseira arrebitada e o caminhão embicado sobre a dianteira e viu a moda atravessar o País em direção ao Sul.
Percebendo a oportunidade, Dininho montou a Salim Automolas, “bem na rota dos verdureiros do Triângulo Mineiro, para oferecer um trabalho 100% sintonizado com o desejo do cliente”.
Dininho conta quais são as partes envolvidas na personalização do caminhão: altura da ponta da carroceria pelo arqueamento dos feixes de molas; o tamanho e o grafismo do lameirão, geralmente de 1,20 m de altura; as quatro lanternas (quatro marias), entre outras. As tampas da carroceria também ganham outra cor e grafismos. “Há os que rebaixam a suspensão dianteira e fazem o corte (rebaixamento) no suporte da poltrona do motorista”, acrescenta.
Ele não entra no mérito da legalidade das intervenções. No entender de Dininho, a inspeção veicular, feita em estabelecimento credenciado pelo Inmetro, regulariza as alterações, que passam a constar do certificado do veículo. Foi o que lhe disseram na delegacia de polícia de Pará de Minas.
Em Itaguara (MG), Juscelino Dal Alba Jr., o Juninho, está no seu segundo truck, adquirido em Pará de Minas mês passado, um Mercedes 2324. Mal pôs a mão na chave, ainda no chassi, levou-o à Salim.
Ali foi feito o arqueamento radical dos feixes de molas traseiros e o balanço de trás subiu para mais de 1,80 m. Juninho sabe que, com isso, perdeu a garantia de fábrica. Mas preocupou-se com a questão legal: levou o veículo ao credenciado do Inmetro de Divinópolis (MG) e, de posse do laudo próprio, retornou à Delegacia de Polícia de Pará de Minas, “para deixar tudo certo”. Pagou R$ 600 só pelo documento complementar.
Com um detalhe: Juninho teve o capricho de adquirir a carroceria do gaúcho Orlando Bock, que fica a 1.600 km de distância. Diz que pesa menos – cerca de 200 km – e ele gosta do grafismo das tampas e da pintura com acabamento em poliuretano. Ao todo, gastou R$ 15 mil, entre carreta e arqueamento.
Traseira superelevada e outros detalhes compõem a personalização do 2324 do Juninho. É o seu jeito de se apresentar à “galera dos verdureiros”, que fica entre a Ceasa de Contagem (MG) e São Paulo em três viagens por semana, aos domingos, terças e quintas-feiras. Diz que, assim, o caminhão tem “melhor estabilidade nas curvas”.
Mas lembrou que a regularização dos ‘arrebitados’ junto ao Inmetro “não está sendo considerada pela Polícia Rodoviária Federal”.