Empresas e caminhoneiros relatam redução drástica de cargas e apontam falhas nos critérios da ANTT
Nelson Bortolin
A fiscalização eletrônica dos pisos mínimos de frete, iniciada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) no começo de outubro, provocou forte turbulência no transporte rodoviário de cargas. Segundo caminhoneiros e empresários do setor, a nova forma de controle travou parte das operações e criou insegurança entre embarcadores e transportadoras.
Não há nenhuma novidade na forma de calcular o piso. Ocorre que antes a fiscalização era frágil e nem sempre identificava o embarcador. A nova tecnologia cruza informações do Código Identificador de Operação de Transporte (Ciot) com as do Manifesto Eletrônico de Documentos Fiscais (MDF-e) e detecta com facilidade quem deixa de pagar os valores previstos para o autônomo ou equiparado (aquele que tem até três veículos).
“Tem muita gente parada, sem conseguir frete”, resume Alan Douglas Rodrigues, diretor da Angelog Transportes, empresa paranaense com oito carretas dedicadas ao transporte de alimentos industrializados. Para ele, o problema está na forma como a ANTT aplicou a fiscalização. “Na minha visão, a agência olhou só para o agronegócio. Faltou entender a realidade dos demais segmentos, como o transporte fracionado e o de complemento de carga”, critica.
Ele afirma que as tabelas da ANTT limitam o uso de veículos de diferentes capacidades. “Se eu contrato um caminhão de seis eixos para uma carga de 25 toneladas, sou obrigado a pagar o frete de seis eixos, mesmo que o de cinco fosse suficiente. No agronegócio, acontece o contrário: com o frete por peso, ficou mais barato usar bitrens de nove eixos do que de sete”, compara.
Falta de atualização e informação
Embora as tabelas de frete mínimo existam desde 2018, Alan observa que a aplicação eletrônica pegou o mercado desprevenido. “Antes, as regras estavam lá, mas não havia atualização nem fiscalização. Agora a ANTT aplica multas sem considerar as diferentes realidades de operação”, afirma.
Ele também aponta falta de clareza sobre quem pode ser multado. “A punição vale para quem contrata autônomos ou equiparados. Acima disso, não há multa. Isso cria desigualdade: os pequenos são fiscalizados, e os grandes, não”, questiona.
Essa é uma dúvida muito comum entre os transportadores, mas segundo a ANTT, seja embarcador ou transportadora, todo mundo será autuado ao pagar valores abaixo das tabelas.
Segundo Alan, houve uma queda expressiva no número de fretes. “Nossa empresa costuma embarcar de dez a doze cargas por semana. Agora estamos na quinta. E justo num período que deveria ser o melhor do ano para o setor alimentício”, lamenta.
Propostas de ajuste
Para o empresário, a solução passa por uma revisão da tabela com critérios técnicos mais realistas. “A ANTT precisa definir o peso mínimo considerando a aplicação do veículo. Se eu uso uma carreta maior para uma carga leve, não deveria ser punido. E o piso mínimo precisa valer para todos, pequenos e grandes”, defende.
Ele também sugere que os valores sejam ajustados conforme as regiões e condições das rotas. “Um frete para Curitiba pode sair mais caro que para São Paulo, porque o trajeto é mais pesado e sinuoso. A tabela não pode ser única para o País inteiro”, avalia.
Tabelas “equivocadas”
A reportagem conversou com outro transportador paranaense que está bem preocupado com a situação. Mas ele preferiu não se identificar. “Eu não sou autônomo, sou transportador, tenho quatro carretas. Mas trabalho subcontratado, prestando serviço para grandes transportadoras que têm contrato direto com embarcadores e indústrias”, explica. Segundo ele, esse modelo é comum, especialmente no transporte de grãos e cargas fracionadas.
Para ele, as tabelas de frete são “totalmente equivocadas”. “Simplesmente tabelaram quilometragem e quantidade de eixos. Só que o transporte é cheio de particularidades, de variações de esforço e de custo. É impossível uniformizar tudo dessa forma.”
Realidades distintas
Outro ponto crítico, segundo o empresário, é a falta de flexibilidade para atender clientes em diferentes regiões. “O mercado funciona com fretes acima e abaixo da tabela, dependendo da rota. Às vezes você precisa subir de Londrina para São Paulo com um frete mais baixo para garantir o retorno. Isso é normal. Mas agora querem tabelar tudo.”
Ele teme que o sistema de multas acabe por inviabilizar os subcontratados, que dependem da margem de lucro entre o frete contratado e o repassado ao motorista autônomo. “Se eu tiver que seguir a tabela em todas as operações, não fecho a conta. Tenho que emitir CTe, pagar PIS, Cofins, ICMS, seguro… e ainda ter lucro para sobreviver. A margem some.”
O resultado, alerta, pode ser a concentração do mercado nas mãos das grandes empresas. “Ou isso vai criar uma corrida artificial pela compra de frota, ou as grandes transportadoras vão crescer ainda mais. Os pequenos e os autônomos vão sumir.”
Constitucionalidade sob questionamento
Para ele, a medida também fere o princípio constitucional do livre mercado. “Eu sou a favor do livre mercado. Se eu não concordo com o frete, eu simplesmente não carrego. O que não dá é para impor multa. Isso vai gerar aproveitadores e matar o pequeno.”
O transportador lembra que há ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) no Supremo Tribunal Federal questionando a validade do piso mínimo desde a greve dos caminhoneiros de 2018. “Enquanto o STF não julgar, o setor vive nesse dilema. E quem sofre mais é quem está na ponta.”
Além do impacto sobre o setor de transporte, ele prevê efeitos diretos na economia. “Se as indústrias forem obrigadas a repassar integralmente o piso às transportadoras, e estas aos subcontratados, o custo vai parar na gôndola do supermercado. Vai virar inflação. É simples assim.”
Como exemplo, cita o transporte de bebidas: “As cervejarias têm o chamado frete T2 — você vai com o produto e volta com o vasilhame. O frete da volta é naturalmente menor, porque o esforço é menor. Agora querem que seja igual. A indústria não vai arcar com o prejuízo, vai repassar. E quem paga é o consumidor.”
Autônomo em dificuldade
A Revista Carga Pesada foi procurada por um caminhoneiro autônomo, de Dourados (MS), que tem uma carreta 3 eixos. E ele confirmou que está praticamente sem trabalho neste mês. “Não sou só eu, parece que o Brasil inteiro tá parando”, afirma ele que prefere não se identificar. “O problema é essa tabela de frete da ANTT. Ela foi feita de um jeito que agora as transportadoras só querem contratar carreta grande, de nove eixos e assim por diante.”
Segundo ele, a diferença de valores tem inviabilizado o trabalho de quem possui caminhões menores. “Aqui na nossa cidade estão pagando R$ 34 para a LS e R$ 31 para o nove eixos. Aí nós, proprietários de três eixos, vamos ficar como? Vamos morrer de fome.”
Fretes escassos e disputa acirrada
O caminhoneiro diz que a dificuldade começou logo após a entrada em vigor da fiscalização. “Começou agora em outubro. Não consigo pegar frete, é só para as grandes. Os pequenos vão ficar só assistindo eles carregados”, relata.
Ele afirma ter procurado a própria ANTT para entender a situação. “Liguei lá e disseram que o problema é no Brasil inteiro, que tá gerando confusão, até briga em alguns lugares.”
Queda drástica no volume de trabalho
O motorista, que normalmente transporta grãos como soja e milho, compara o ritmo atual com o do mês passado. “Na primeira quinzena de setembro eu não parava, era um frete atrás do outro. Agora, nesta primeira quinzena de outubro, tô com uma carga só — e ainda tá parada por causa da chuva”, conta.
Apesar da expectativa de melhora durante a próxima safra, ele não esconde a preocupação. “Acredito que na safra vai melhorar, mas você não vive só de safra. Do jeito que tá, vai ser difícil segurar”, lamenta.
Frete pode custar 21% menos em 9 eixos
Um frete de granel sólido, segundo a versão atual da tabela de frete prevista na resolução 6067 da ANTT, tem piso mínimo de R$ 6,7408 por km no caso de uma composição de seis eixos e de R$ 8,2420 na de 9 eixos.
A composição de 6 eixos carrega uma carga líquida que varia de 35 a 36 toneladas conforme o modelo dos veículos. Já a de 9 eixos leva de 52 a 54 toneladas.
No primeiro caso, portanto, a tonelada transportada por km tem piso mínimo de R$ 0,1925 a R$ 0,1872. Já, no segundo, vai de R$ 0,1585 a R$ 0,1526.
Ou seja, a tonelada transportada no 9 eixos vai custar de 17% a 21% mais barata que na composição de 6 eixos.




