Paulo Douglas Almeida de Moraes considera que a figura do autônomo agregado, em geral, é uma forma de burla à legislação trabalhista
Nelson Bortolin
Faz pelo menos 15 anos que o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) Paulo Douglas Almeida de Moraes acompanha de perto a situação dos caminhoneiros. As jornadas de trabalho exaustivas, o uso de entorpecentes, a falta de infraestrutura para abrigar os profissionais nas estradas brasileiras são algumas das mazelas vividas pela categoria, que são bem conhecidas pelo procurador de Mato Grosso do Sul.
Em 2012, ele comemorou a promulgação da lei 12.619, que, entre outras coisas, igualou a carga horária dos motoristas profissionais à dos demais trabalhadores. A lei também passou a obrigar que todo caminhoneiro – inclusive os autônomos – descansassem ao menos 11 horas entre uma jornada de trabalho e outra.
Na visão do procurador, foi um dos poucos avanços para a categoria. E durou pouco. Em 2015, a lei foi substituída por outra, a de número 13.103. A jornada de trabalho do empregado voltou a aumentar (para 12 horas) e o intervalo interjornadas caiu para 8 horas.
Em geral, segundo Moraes, as leis não favorecem os profissionais. A 11.442, que regulamenta o transporte rodoviário de cargas, por exemplo, criou um jeito de as empresas fraudarem a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ao criar o transportador autônomo de carga agregado. “Temos uma confusão agravada com relação ao que seria considerado um trabalhador autônomo ou não, sempre no sentido de privilegiar a máxima exploração desse trabalhador”, afirma Moraes em entrevista à Revista Carga Pesada. Confira abaixo:
- O senhor vem acompanhando a situação dos caminhoneiros brasileiros há muitos anos. Como avalia as condições atuais de trabalho desses profissionais?
Nós já tínhamos um quadro bastante complicado no segmento. E a evolução não tem sido positiva. Tanto no plano normativo quanto no plano judicial, está bastante complicado. E em meio a um contexto econômico que exerce uma pressão muito grande no transporte como um todo.
Temos uma confusão agravada com relação ao que seria considerado um trabalhador autônomo ou não, sempre no sentido de privilegiar a máxima exploração desse trabalhador.
Essa confusão amplia a insegurança jurídica e dificulta ainda mais a proteção dos motoristas.
- Na relação entre empresa e caminhoneiro, o que é legal e o que não é?
O texto da lei (11.442) é claro. Ele praticamente autoriza a fraude. Diz que não há relação de emprego, ainda que a dedicação do motorista seja exclusiva para aquela empresa. Agora ocorre que temos o artigo 9º da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) , que não foi revogado, ainda bem. Diz que as fraudes são nulas de pleno direito.
Quando eu menciono insegurança jurídica, é exatamente isso. Na medida em que se legisla a possibilidade de fraude e outro dispositivo diz que a fraude é nula de pleno direito, ficamos numa situação de perplexidade. Se lermos a 11.442 na sua literalidade, o agregado pode ser considerado pelo Poder Judiciário como um autônomo qualquer.
Mas não é isso que acontece de fato. Quando essa situação é levada ao Judiciário, especialmente ao Judiciário Trabalhista, o juiz do trabalho analisa a luz do artigo 9º.
Como se identifica a fraude? É quando o nível de subordinação daquele motorista é bastante expressivo, denotando uma subordinação não apenas econômica, mas também operacional. Uma subordinação permeada por uso de mecanismos de punição desses motoristas. E aí vem o reconhecimento da relação de emprego e todos os derivativos da lei: férias, FGTS, tudo o mais.
Qual é o problema novo? É que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) entendeu, e o Supremo (Supremo Tribunal Federal – STF) também, que caberia à Justiça comum fazer a análise se essa relação (entre transportadora e caminhoneiro) é de emprego ou comercial. Isso é muito ruim porque o juiz de direito (da Justiça comum) tem uma formação que não lhe fornece ferramentas adequadas para fazer essa análise. É o juiz do trabalho que reúne essas ferramentas.
O juiz de direito eventualmente sequer conhece o artigo 9º da CLT. Então esse entendimento que está sendo consolidado nas cortes superiores é um entendimento que promove e agrava ainda mais a fraude legislada na lei 11.442.
- O que o Supremo decidiu exatamente?
No entendimento do Supremo, cabe a Justiça comum e não a do trabalho apreciar a natureza dos vínculos de direito comercial ou uma relação de emprego, o que é lamentável, porque, como já disse, a verificação dessa relação, tradicionalmente e naturalmente, deveria competir a um juiz do trabalho.
- É um entendimento para qualquer tipo de atividade profissional?
O Supremo apreciou na ADC (Ação Direta de Constitucionalidade) número 48, proposta pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), entendeu que a lei 11.442, no seu dispositivo que estabelece a relação jurídica mantida entre o motorista – seja ele independente ou agregado – seria de natureza comercial e atribui, portanto, a Justiça comum a competência para apreciar as questões relativas entre esse motorista e as transportadoras.
Nesse sentido instaurou uma insegurança jurídica aguda. Um caminhoneiro não pode mais pleitear vínculo empregatício na Justiça do trabalho? Em termos práticos, você precisa de uma habilidade do advogado que eventualmente o motorista venha contratar, que deve lançar mão da teoria da asserção. E deve, portanto, narrar as questões fáticas que denotariam uma relação de emprego e não de autonomia para que o juiz do trabalho possa não afastar e não se julgar incompetente diante desse entendimento do Supremo. Então existe a possibilidade? Existe, mas ela ficou mais dificultada.
- O que caracteriza subordinação na atividade de motorista no seu entendimento?
Na minha avaliação, ela é plena (no caso do agregado). Não é o agregado que contrata com o embarcador, o serviço é do transportador. E, nesses contratos, já vêm estabelecidos os prazos de entrega. Essa falta de governabilidade já denota uma subordinação porque quem acaba determinando os prazos de modo direto é o embarcador e, de modo indireto, o transportador.
Não é só isso.
Esse transportador também controla efetivamente a forma de prestação de serviço. Ele rastreia esse veículo, ele pune eventualmente algo que esse motorista faça e que inobserve as regras estabelecidas pela transportadora, em especial com relação aos prazos. E isso obviamente impõe a esse motorista, seja ele empregado ou agregado, uma condição de subordinação total.
É possível um agregado que realmente seja um agregado? É. Desde que tivéssemos uma situação hipotética de alguma autonomia importante no cumprimento daquela viagem e não é isso que se encontra no cotidiano.
O que a gente vê realmente é uma situação de subordinação onde o motorista agregado trabalha em condições idênticas ao empregado, mas com algumas situações que expõem o trabalhador a uma condição ainda mais agravada porque dele acaba-se exigindo jornadas mais elastecidas. E ele obviamente não tem os direitos trabalhistas reconhecidos ao empregado.
- O fato de ele usar o veículo da empresa tem alguma interferência na interpretação?
A lei permite que ele coloque seu veículo exclusivamente a serviço de uma transportadora. Pode inclusive adesivar o veículo como se fosse da própria transportadora. Essa questão não chega a ser elemento importante para caracterizar a subordinação.
- Mas é que, em muitas situações, o motorista tem seu cavalo trator, mas utiliza a carreta da transportadora….
Em tese, isso não descaracterizaria a condição de agregado. O ponto central está na subordinação.
- Alguns motoristas reclamam que são obrigados pelo contratante a constituírem pessoas jurídicas. Assim, a empresa não precisa recolher INSS. Isso é legal?
A reforma trabalhista abriu as portas para a fraude ao permitir a terceirização sem limite. Teoricamente, isso é possível, segundo o contexto instaurado pela reforma, mas volto a dizer, se a finalidade é simplesmente se furtar ao cumprimento de direitos trabalhistas, temos o artigo 9º da CLT que coloca essa situação como fraude. Isso tudo depende da interpretação do caso concreto para verificar se esses elementos de fraude estão presentes.
Temos duas questões que levam a esse tipo de imposição: uma de natureza trabalhista e outra de natureza fiscal.
As empresas estão buscando gerar uma elisão fiscal, sobretudo de cunho previdenciário ao exigir que esses motoristas constituam empresas e trabalhem como pessoa jurídica.
- A questão da jornada de trabalho dos motoristas melhorou ou piorou nos últimos anos?
Piorou sensivelmente. Estamos tendo a constatação disso. A evolução normativa já atrapalhou bastante. A lei 13.103 estabelece legalmente até 12 horas para esse profissional trabalhar, o que já é um absurdo. O que a Polícia Rodoviária Federal vem constatando nas estradas é que a infração mais comum é a inobservância ao controle de jornada. Os motoristas vêm correndo riscos e obviamente isso envolve o uso de drogas.
Infelizmente a Polícia Rodoviária Federal não dispõe de instrumentos para fazer o exame toxicológico naquele momento e identificar se o motorista está fazendo uso de droga, mas o que temos tanto pela dificuldade do controle do tempo de jornada como pela falta de fiscalização, é que a essa situação vem se agravando de maneira bastante drástica ao longo do tempo.
Onde não há fiscalização você tem uma tendência ao desrespeito sistemático e é isso que a gente tem visto.
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2 Comentários
Bom dia!
Penso que a culpa é exclusiva nossa, pois nos submetemos as exigências dessas empresas mesmo sendo absurdas!
A quantidade de autônomos que estão enterrados em dividas é muito grande e isso acaba fazendo com que o profissional submeta as “ordens” do empresário.
Sou radicalmente contra a contrair de dividas, quando não possuímos dívidas, temos condições de argumentar e não aceitar imposições abusivas!
Não são poucos os motoristas que estão empregados e quando a empresa quer “descartar” o seu “seminovo” empurram esses veículos em seus empregados que assumem dividas quase que impagáveis, e assim o trabalhador que tem uma visão de crescer se submente a tudo que o patrão determina e que sai perdendo é o profissional!
Um amigo absorveu uma divida enorme, usou toda sua receita advinda dos direitos trabalhistas que acumulou por longos anos e comprou um cavalo mecânico do seu patrão, em síntese: ficou sem dinheiro para sustentar a família e com uma divida de quase 10.000,00 mensais e o patrão primeiro desconta sua parcela e depois de sobrar vai pro ex. empregado!
Essa situação tem levado a diminuição dos preços do frete que acabam prejudicando toda a cadeia!
Em fim, quer comprar um caminhão, junte a grana, compre um que esteja dentro da sua possibilidade e seja feliz!
Completando:
Em tudo existem excessões.